Todos episódios recessivos mundiais ocorridos nos últimos 100 anos foram gestados no próprio organismo da economia e, em geral, enfrentados mediante políticas anticíclicas. Agora, pela primeira vez, a retração da atividade produtiva originou-se fora do sistema econômico e as chances de recuperação dependem de um fator exógeno. Encontramo-nos, assim, diante de uma realidade onde as tradicionais medidas anticíclicas terão que atuar sobre cenário distinto do habitual.
Em outras palavras, a atual ociosidade surgida na capacidade de produção instalada não decorreu de timidez intrínseca da demanda das famílias, ou de trauma no mercado financeiro, ou de queda no preço de produtos no mercado externo, mas sim do fato de os consumidores reduzirem suas compras por encontrarem-se enclausurados e, também, de as empresas fecharem as portas porque seu pessoal encontra-se impedido de trabalhar. Acumulou-se então um montante volumoso de demanda reprimida, verificável em todas as classes sociais, definhando o funcionamento do arcabouço produtivo mundial.
Esse panorama torna plausível supor que quando a onda virótica for equacionada, o crescimento econômico não será apenas fruto de políticas anticíclicas, mas também resultará espontaneamente da liberação de parcela da demanda reprimida. Isto não significa que a retomada será espetacular, mas sim que seu início poderá ocorrer logo em seguida ao controle da pandemia, graças às compras a serem efetuadas pelos grupos menos atingidos pelo declínio de renda.
Quando o pesadelo terminar, a população menos favorecida não disporá de renda para entusiástica corrida ao consumo. Nessas circunstâncias, as políticas anticíclicas não se restringiriam a investimentos para recobrar a capacidade de produção, mas sim enfatizariam o restabelecimento do poder aquisitivo das famílias atingidas com maior intensidade pela crise, conforme receita keynesiana. Do lado da oferta, o premente seria reanimar unidades produtivas desfalecidas durante a quarentena. As empresas sobreviventes do confinamento nem necessitarão de investimentos imediatos para reerguerem sua produção, visto que bastaria ocupar a ociosidade.
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Evidentemente, quanto mais duradoura for a quarentena maiores serão os estragos. Mas essa fatalidade não extinguiria integralmente a fatia de capacidade de consumo não satisfeita acumulada no período, a qual desempenhará papel de um dos pontos de partida da convalescênça da economia. A profundidade e a extensão das avarias a serem sofridas pelo setor financeiro constituirão influente condicionante da futura ascensão do PIB. Porém, ainda é cedo para prever até que ponto esse setor funcionará como alavanca da retomada ou como fonte de dor de cabeça.
Mesmo na hipótese otimista de iminente fim da reclusão vigente e amenização da dramática situação dos mais pobres, o melhor que podemos aspirar é a volta ao contexto onde a maioria dos países, inclusive nas Américas e na Europa, não consegue livrar-se de amarras estruturais que impõem um crescimento débil. O choque paralisante sofrido neste momento pelas atividades produtivas possui caráter epidêmico, mas o marasmo econômico prevalecente há mais de dez anos possui natureza endêmica.
Há várias décadas os países capitalistas, de todos níveis de desenvolvimento, vêm evoluindo de forma a favorecer as classes situadas no topo da pirâmide de renda, em detrimento do vigor do capitalismo e debilitando de maneira endêmica as chances de intenso crescimento econômico. As manifestações mais evidentes dessa realidade, verificáveis em especial no Brasil e Estados Unidos, são:
a) o processo de concentração social de renda, responsável pela acentuada defasagem entre o mercado consumidor efetivo e o potencial oferecido pelo tamanho da população. Esse processo coaduna-se com a predominância de esquema tributário regressivo e com a constante escassez de recursos destinados a setores essenciais à equidade social, tais como saúde, educação, transporte coletivo, saneamento e habitação;
b) a incapacidade institucional de financiamento da modernização do setor de infraestrutura, provocando obstáculos às empresas em maximizar sua eficiência e danificando o padrão de competitividade de todo o sistema produtivo. Além das óbvias carências brasileiras nessa área, vale citar como exemplo as deficiências das ferrovias e dos portos americanos. Como resultado, bens e serviços chegam ao mercado a preços superiores aos que poderiam custar, sacrificando a qualidade média de vida da sociedade.
Vencer a paralisia ora prevalecente não basta para ingressarmos em uma era de prosperidade. Se não forem implantadas políticas públicas direcionadas a diluir as amarras ao crescimento intenso, não haverá como nutrir expectativas ambiciosas. Tal percepção implica em reconhecer que o esforço para eliminar o ingrediente endêmico do marasmo econômico exigirá uma mobilização de conteúdo reformista e de dimensão proporcional à dedicada a enfrentar a pandemia e suas consequências.
Essa maneira de encarar o futuro equivale ao exílio da festejada ideologia do “Estado mínimo”, em voga há vários anos principalmente no ambiente político norte americano e, mais recentemente, no Brasil. O debate a respeito da presença do Estado na economia costuma envolver argumentos vinculados principalmente a:
a) intensidade no uso de instrumentos públicos de fomento, de equidade social e de regulamentação;
b) grau de estatização da economia.
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No âmbito desse debate verifica-se a ocorrência de dois gêneros antagônicos de argumentos, ambos distorcidos e de natureza ideológica. Um insiste em tachar de socialismo o uso de instrumentos de políticas públicas compatíveis com o modelo de autêntico caráter socialdemocrata. Os porta-vozes desse posicionamento encaram de maneira obtusa, ou mal intencionada, as estratégias adequadas para energizar o capitalismo e abrandar sua propensão aos ciclos recessivos.
O outro gênero de argumento tacha a privatização como prejudicial aos interesses do povo, como se a propriedade estatal de empresas fosse imprescindível à elevação do nível de vida dos mais pobres e à segurança nacional. Na verdade, a privatização de empresas é compatível com o uso enfático de instrumentos governamentais para estimular desenvolvimento econômico e melhor distribuição de renda, além de conviver em harmonia com agências reguladoras eficazes.
Se de fato o suprimento da demanda reprimida contribuir para a utilização da capacidade ociosa e a economia mundial começar a readquirir fôlego, surgirá oportunidade ideal de sucatear preconceitos ideológicos, à direita e à esquerda, que obstruem o avanço socialmente equilibrado do bem estar da humanidade.
Fonte: “Conjuntura Econômica, FGV”