Desde que Maurício Macri ganhou as eleições na Argentina, começou um frenesi em torno do país, sempre contestado por essa coluna em outros artigos. Eleito democraticamente para expurgar os malefícios do período Kirchner, o atual presidente chegou com o trabalho não trivial de tentar recompor a Argentina depois de anos de desmandos.
De fato, o Kircherismo conseguiu estragar mais sua economia do que o petismo recente no Brasil. Dilma não teve tempo para levar o país para o caminho que o casal argentino escolheu para seguir. Foram anos de constante degradação na economia e na política que levaram a déficits gêmeos (fiscal e externo) elevados e uma inflação na casa dos 30%.
Aqui a conta fiscal estava salgada e a inflação caminhava para o descontrole, chegando aos 12% nos piores momentos. Conseguimos reverter essa trajetória a partir de 2016, mesmo faltando muito por fazer. A Argentina, infelizmente, não conseguiu fazer o dever de casa.
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Por mais que Macri tenha melhorado e muito a administração de seu país, seus ganhos foram maiores no cenário político internacional do que na economia. Visto como governo eleito ao invés do brasileiro, cuja pecha de golpista não desgrudou mais dele, conseguiu abrir espaço no cenário internacional para um país que ficou muitos anos fora dela. Vimos a desenvoltura argentina, por exemplo, no Fórum Econômico Mundial ou nas reuniões multilaterais como a da OMC.
Mas ser bem visto lá fora não enche a barriga econômica. Enquanto Macri nadava na boa onda das relações internacionais, a economia seguia ainda patinando. O déficit em conta corrente piorou muito nos últimos anos por causa do crescimento econômico; o déficit público não conseguiu ser contornado e, pior, a inflação não deu sinais de ceder, pelo contrário. Mesmo implementando metas de inflação, foram muito ambiciosas ao querer 15% de inflação esse ano e já será inaugurado com a inflação estourando o teto da meta este ano.
Boa parte dessa possibilidade vem do rastro de desvalorizações que temos visto ao redor do mundo com as mudanças no cenário americano. Os riscos por lá se avolumam com crescimento e inflação em aceleração no meio de um mercado de trabalho sobreaquecido. No meio disso, o petróleo tem dado sinais de que poderá buscar patamares mais altos, especialmente com a tensão que seguirá entre EUA e Irã. Para os EUA, petróleo em alta é inflação pressionada na veia pela gasolina.
Com isso tudo, os países com maiores distorções passaram a ter suas taxas de câmbio pressionadas. A Argentina é um dos piores casos pelos seus fundamentos econômicos ruins. Macri não teve tempo de ajustar a casa como deveria com um Congresso menos amigável do que Temer teve por aqui e uma população mais atenta contra reformas que lhe pareciam negativas, como o caso da reforma trabalhista que Macri não conseguiu aprovar.
A Argentina de agora lembra o Brasil de 2002. Politicamente um pouco mais estável, mas com a economia ainda em fase de ajustes. Ao ver a possibilidade de Lula virar presidente naquele momento, a taxa de câmbio começou a disparar. A desordem nas contas externas não era muito diferente do que os Argentinos passam hoje e o fiscal, em que pese melhor naquele momento, ainda funcionava com dívida bruta elevada e taxas de juros altas, o que tornava a dinâmica da dívida muito ruim. Sem falar que éramos devedores em dívida externa, o que só piorava a situação.
A maxidesvalorização que tivemos foi revertida nos anos seguintes com a conjunção de boa política econômica no começo do governo Lula, que depois se perdeu a partir de 2006. Mas foi suficiente naquele momento.
Já Macri terá que reverter a trajetória negativa no meio do mandato com um Congresso que muito provavelmente lhe virará as costas com vistas às eleições vindouras. O que virá pela frente infelizmente poderá ser a hora da verdade para o país, que não veio quando Macri foi eleito. Baixar a inflação de 30% é o único caminho para se buscar estabilidade macroeconômica real, mas para diminuir tal taxa talvez fosse inevitável um ajuste fiscal e monetário muito mais dolorido, ou seja, recessivo. Os argentinos não quiseram pagar esse preço no começo do governo Macri. Talvez agora vão ter que enfrentar a dura realidade.
Como último comentário, um ajuste mais severo nos EUA deve impactar a indústria automobilística brasileira, mas com efeito muito menor hoje. As vendas domésticas começaram a deslanchar e servem como contraponto a uma possível desaceleração nas exportações. Estas ajudaram o Brasil durante a crise e agora podem crescer menos ao termos um mercado doméstico que pode eventualmente compensar o debacle argentino.
No entanto, essa mesma crise argentina nos serve como lição do que acontece a um país que posterga suas reformas. Infelizmente, nós podemos, novamente, ser a Argentina amanhã se as eleições aqui não forem bem encaminhadas.
Fonte: “Exame”, 08/05/2018