O Peru viveu uma crise constitucional: o país teve dois presidentes, um eleito pelo voto popular e outro entronizado pelo Parlamento. Entre nós a arbitragem do conflito constitucional tem sido feita pelo STF. Iniciativas do Executivo tem sido anuladas ou rejeitadas pelos demais Poderes; os atores acatam as decisões.
O caso peruano dá margem a equívocos dado o desconhecimento de seu sistema de governo: a variante presidencial-parlamentar de semipresidencialismo. Não há nada exótico aqui —o semipresidencialismo está presente em quase um quarto dos países; é o modelo escolhido pela maioria dos países que se democratizaram nas duas últimas décadas. Do total de 14 países pós-comunistas, 12 adotaram o sistema; das 12 novas democracias africanas, 7 são semipresidencialistas.
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Nesse sistema há um presidente eleito pelo voto popular e um gabinete responsável perante à Assembleia. Na variante presidencial-parlamentar, o primeiro ministro é responsável perante tanto à Assembleia quanto o presidente; na premiê-presidencial apenas perante à primeira. Muitos analistas defendem o sistema por evitar crises em situações em que um presidente é minoritário.
Ao contrário do regime de Weimar ou Áustria, no Peru o presidente sofre restrições quanto à dissolução do Parlamento: só pode fazê-lo caso duas iniciativas suas, apresentadas como moções de confiança, sejam derrotadas no Parlamento (o presidente francês só pode faze-lo uma única vez por ano). E foi o que aconteceu.
A fragmentação partidária tem gerado alta rotatividade: os mandatos dos premiês tem duração média de cinco meses.
O confronto virulento entre Poderes explica-se por razões semelhantes ao que aconteceu no Brasil: o choque da exposição de corrupção sistêmica, levando ao impeachment de um presidente, ao suicídio de outro, além da prisão da filha de um ex-presidente, convertida em líder da oposição e candidata presidencial em duas eleições.
O contexto importa —a economia está em expansão e o presidente conta com apoio da opinião pública—, mas há duas características institucionais que exacerbam o conflito.
A primeira é a aprovação recente, em referendo popular, de medida vedando a reeleição de parlamentares: a dissolução do Congresso equivale agora a uma sentença de morte.
A segunda, o mandato de apenas cinco anos para membros do Tribunal Constitucional, o que mina sua independência. Ambas medidas encurtam brutalmente o horizonte temporal de parlamentares e juízes, dificultando compromissos.
As regras institucionais peruanas criam desincentivos para a cooperação, mas a intensidade do conflito após o “choque Odebrecht” é determinante na crise.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 7/10/2019