A vitória de Cristina Kirchner na Argentina em 2011 foi explicada por quatro razões: a pujança apresentada na época pela economia; a exploração do luto pela morte de Néstor Kirchner; o receio do eleitorado de retornar a uma situação de desgoverno como a da gestão De la Rúa; e a incompetência da oposição.
Entretanto, a Argentina, mais uma vez, mostrou que amplas maiorias não são garantia de condução segura do dia a dia. Cabe lembrar que Cámpora arrasou nas urnas em 1973, para renunciar depois. Foi sucedido por Perón, eleito em votação consagradora, que acabou no banho de sangue dos anos 70. Alfonsín, que chegou a flertar com a ideia de fundar um novo “movimento histórico”, teve de antecipar o fim do mandato por causa da hiperinflação. E Menem, cuja popularidade fez com que sonhasse com um terceiro mandato, foi engolido pela crise e tornou-se sinônimo de palavrão na política local.
A gestão do país após a vitória kirchnerista em 2011, com a multiplicação de atos de soberba, a percepção de que uma espécie de estado permanente de tensão se instalou no país e a proliferação de problemas na vida cotidiana, indo desde a inflação ao agravamento da violência, levou a uma mudança do humor social, com perda de prestígio do governo, concluindo na derrota nas eleições legislativas de meio de período realizadas em outubro.
A Argentina precisa encontrar uma saída para “sincerar” o sistema de preços. Além disso, em razão de diversos atos praticados ao longo dos anos, amarga as consequências do isolamento externo, que impede o país de receber financiamento em proporção importante.
Como a economia teve forte expansão nos anos K, as importações cresceram muito e isso acendeu o sinal vermelho no painel de controle do governo. Isso fez entrar em cena o poderoso secretário de Comércio, que passou a ligar para os principais exportadores do país exigindo antecipar a liquidação das vendas ao exterior e deixar de lado qualquer aquisição de divisas.
As consequências não tardaram a aparecer. A frase “de las importaciones, olvidate”, dita para diferentes industriais, levou uma vasta gama de setores a ter problemas de abastecimento para fabricar seus produtos. O ressurgimento da prática que na década de 70 um ministro tinha batizado como “vivir con lo nuestro” levou a economia a um fechamento sem precedentes. As importações passaram a depender da vontade imperial de um homem só. Não é de estranhar que os problemas nas plantas fossem se avolumando – e que o secretário de Comércio tenha sido afastado.
Nesse contexto, a presidente se isolou cada vez mais, sem ouvir ninguém, a ponto de, quando um ministro ousou numa reunião sugerir um rumo diferente em relação a uma proposta, ter recebido a advertência do titular do cargo equivalente ao de nossa Casa Civil, com a mensagem de que “a la presidenta no se le responde: se la escucha”.
A Argentina ruma a um final previsível da experiência dirigista em curso. Há números que impressionam. Santa Cruz, Estado que Kirchner governou como senhor absoluto antes de ser eleito presidente, tinha 11 mil funcionários públicos no final do governo militar em 1983; aumentou o contingente para 22 mil nos tempos de Kirchner como governador; escalou para 40 mil em 2007, quando Cristina Kirchner foi eleita após quatro anos de gestão do marido que nunca esqueceu a sua província de origem; e acabou com 60 mil servidores. O país, rico em petróleo e gás, vê a produção do primeiro cair desde 1998 e a do segundo, desde 2004. Como disse no “La Nación” o colunista Carlos Pagni, “sempre que a dinâmica de mercado faz surgir um desequilíbrio, o kirchnerismo tende a identificar uma conspiração” (14/11/2011). Anos de desconfiança em relação à gestão privada cobram seu preço. O país mergulhou numa espiral de controles, pressão de preços e administração “soviética” do que se pode importar. A recente troca de ministros visa a mitigar esse processo. É difícil de imaginar como isso possa acabar bem sem mudanças de rumo.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 30/11/2013
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