Era uma melancólica noite de domingo quase igual a todas as outras, exceto pelo fato de que o Brasil todo acompanhava os resultados da apuração da votação do segundo turno do pleito presidencial. Pouco antes das 21 horas do dia 26 de outubro de 2014, os meios de comunicação começavam a divulgar o resultado que já não se podia reverter: a chapa Dilma Rousseff/Michel Temer, com 51,64% dos votos válidos (54,5 milhões de votos), se consagrava vitoriosa frente à chapa opositora composta por Aécio Neves/Aloysio Nunes, que ficara com 48,36% dos votos válidos (51 milhões de votos). Na sétima eleição do país após a redemocratização, dos 143 milhões dos brasileiros aptos a votar, apenas 113 milhões decidiram usufruir do seu direito, representando uma abstenção aproximada de 21%, bastante elevada para um país onde o voto é obrigatório e já indicando certa insatisfação e sensação de falta de representatividade por parte dos eleitores.
Foi uma segunda-feira de ressaca moral. E parece que essa ressaca ainda nos persegue. Apesar da campanha política bilionária do PT, que buscou mascarar a dura realidade dos nossos combalidos números, sabíamos que algo não ia bem no país. A crise econômica, que começou a se materializar no início daquele ano, mostrou a sua face mais cruel. Passamos a entender o significado e os efeitos nefastos de uma “pedalada fiscal”, passamos a entender que não existe almoço grátis (os preços manipulados da energia elétrica, na tentativa de conter a inflação fora de controle, depois tiveram de ser reincorporados às contas de milhões de consumidores) e sentimos na renda, no consumo e nos gastos assistenciais, o impacto gerado pelo desemprego de mais de 10 milhões de trabalhadores. Não muito tempo depois, a Operação Lava-Jato, iniciada em março de 2014, escancarou a podridão das relações perniciosas entres agentes públicos e privados que saqueiam nosso país há décadas num montante que talvez nunca sejamos capazes de quantificar, situação alimentada e perenizada pelos partidos políticos que se alternam no poder em troca de favores e conchavos. Não muito tempo depois, tivemos ainda o longo e desgastante processo de impeachment de Dilma Rousseff, que naquele momento já não tinha mais nenhum governo sobre o país. E assim, além da crise na economia, mergulhamos também numa crise moral sem precedentes, uma sensação de impotência, de alienação e de exclusão.
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Como em qualquer processo evolutivo, a “lição” aprendida em 2014 deveria ser suficiente para que nos preparássemos melhor para o pleito eleitoral do ano presente, buscando sair da crise que já nos custa uma década perdida e que pode ainda nos custar muito mais. Na arena política, depois de tantos escândalos envolvendo praticamente todas as siglas, faria sentido passar a apoiar propostas alinhadas com a responsabilidade fiscal, com a diminuição do Estado brasileiro e com uma agenda reformista capaz de recolocar o Brasil na trajetória do crescimento.
Faria sentido. Mas até aqui não o fez. O pleito eleitoral em andamento se mostrou o mais surpreendente de todos os tempos, confundindo analistas experientes e versados no tema. As novas regras de financiamento de campanha colocaram muitos marqueteiros políticos na fila dos desempregados. A campanha deixou de ser “analógica” e passou a ser “digital”. Mais do que isso, deixou de ser organizada e passou a ser descentralizada, pulverizada e capitaneada por infinitos grupos independentes utilizando-se do baixo custo e do amplo alcance das mídias sociais. Os candidatos a vice mal apareceram e, quando o fizeram, mais atrapalharam do que ajudaram (meu sonho secreto seria presenciar um debate político somente com a presença de Jair Bolsonaro, General Mourão e Paulo Guedes… quanta contradição). Constatamos, tristemente, que o sistema/mecanismo foi desenhado de maneira a se perpetuar, dificultando o nascimento e o fortalecimento de um movimento reformista verdadeiro (a única chapa genuinamente reformista nem sequer pôde apresentar seu plano de governo na mídia televisiva e obviamente teve sua exposição prejudicada ao recusar a verba proveniente do fundo eleitoral). Tivemos um atentado no meio do caminho. O líder nas pesquisas cresce mesmo sem fazer campanha (quanto menos falar, melhor). O vice-líder se aconselha na carceragem da Polícia Federal em Curitiba. O terceiro colocado assusta os eleitores do centro, da esquerda e da direita, com um discurso eloquente muito alinhado com aquele de alguns vizinhos latino-americanos (muito firme, nada consistente). O quarto colocado não consegue apoio nem da sua numerosa base de partidos aliados. A única representante feminina entre os cinco primeiros colocados ainda não começou a sua campanha, não se posicionou, não se manifestou, não elogiou e nem reclamou. Fake News por todas as partes, confundindo ainda mais uma massa eleitoral pouco esclarecida. O brasileiro médio continua sem dar a menor atenção para a eleição legislativa, cujas cadeiras são repassadas de pais para filhos, como se fossem uma herança, sem qualquer renovação.
Acima de tudo, essa não é uma eleição de personagens. É uma eleição de sentimentos, de medos e ansiedades. Não é uma eleição de convicções e propostas, apenas de negações vazias que em nada contribuem com as reformas que o país tanto necessita. Enganam-se aqueles que pensam que o “não” é justo e suficiente. O “não” nada mais é do que a revolta pela situação presente, mas, que sem conteúdo, sem ideias e sem fundamentos, somente servirá para a pavimentação e o retorno futuro daquilo que hoje rechaçamos, daquilo que hoje nos aterroriza. A política é um pêndulo: quanto mais você o afasta do centro de massa, mais forte e violento ele volta no segundo momento. Um ódio alimenta o outro, e o ódio alimenta o medo, e com medo todos perdemos. A gravidade do momento exige responsabilidade por parte dos que serão eleitos e serenidade por parte daqueles que os elegerão, e é com essa serenidade que devemos tomar o caminho das urnas no próximo domingo.