Os brasileiros deveriam conhecer em detalhes a história do empreendedor Sérgio Martins, 65 anos, hoje morador de Valinhos (SP). Aliás, dentro de sua intenção de criar o Ministério da Pequena Empresa, a presidenta Dilma Rousseff, poderia, como sugestão, convidá-lo para uma conversa no Planalto para que ele lhe contasse em detalhes as suas peripécias no mundo empreendedor. Com certeza, ela iria sentir-se mais informada para tomar decisões de apoio e estímulo às micro e pequenas empresas do Brasil.
Sérgio Martins nasceu em Catanduva (SP) e, quando era ainda criança, seus pais migraram para a região do ABC, “à cata de melhora”, como diziam os migrantes daquela época. Estudou o suficiente para conseguir emprego como metalúrgico numa das indústrias da região. Foi colega do ex-presidente Lula na produção da Villares.
Tempos depois, quando Lula iniciava sua longa trajetória no sindicalismo-operário, Sérgio Martins resolveu empreender, usando seus conhecimentos de operário especializado. Abriu uma metalúrgica em São Caetano do Sul. Lula prosperou na política e ele faliu. Iria começar o seu martírio, que perdura até os dias de hoje.
Ao fechar a metalúrgica por não conseguir sustentá-la devido sobretudo à enorme carga tributária, Martins adotou o mesmo comportamento de milhares de pequenos empreendedores no Brasil: pagou até o último centavo de seu passivo trabalhista e ofereceu suas máquinas como pagamento do passivo fiscal. Mal sabia que iria permanecer dependurado em dívidas tributárias estaduais e federais, cujo montante, acrescido de juros, correção monetária e outros encargos que os pequenos não conseguem sequer entender, foi conhecer mais de 20 anos depois.
Fechada a metalúrgica, Sérgio Martins mudou-se com a família – mulher e três filhos – para Valinhos. Como é desses empreendedores natos, continuou… empreendendo. Instalou uma micro-metalúrgica, mais do tamanho de suas pernas, e se manteve no trabalho de moldar porcas, parafusos, pinos, tirar rebarbas de peças. Há cinco ou seis anos atrás, seu trabalho em Valinhos chamava a atenção pelo alcance social: sua microempresa recebia milhões de pinos de aço, desses usados para fixar placas de gesso, e sua tarefa era fazer um pequeno furo em cada pino, onde seria amarrado o fio de nylon como requisito de segurança na construção civil.
Como eram muitos pinos para um só metalúrgico, Martins inventou uma rede de “furadores domésticos”. Distribuía “furadeiras” na casa de amigos e parentes, entregava milhares de pinos a cada família e aos fins de semana, com o dinheiro para pagamento no bolso, percorria cada casa para recolher a produção de alguns dias. Pagava por pino furado. Sua rede chegou a ter mais de 50 famílias. Havia “furadores”, que trabalhando à noite ou nos horários de descanso, chegavam a incorporar até R$ 2 mil reais à renda da família. A China acabou com a rede. A empresa que encomendava o “furo” nos pinos agora compra tudo da China. E os pinos já vêm furados.
Não pensem que ele desistiu. Sérgio Martins hoje não fura mais pinos, mas atende a várias metalúrgicas da região na confecção de peças metálicas que ele sabe moldar e acabar como ninguém.
Voltemos alguns anos para descobrir o que aconteceu com ele depois de 20 anos do fechamento de sua metalúrgica em São Caetano. Sérgio Martins joga bocha, um esporte muito difundido no interior de São Paulo. Antigamente, os pisos das canchas de bocha eram de terra socada, depois mudaram para asfalto coberto de saibro e, ultimamente, são revestidos por um material sintético também da família do asfalto. Criativo, Martins foi um dos primeiros jogadores de bocha a aprender como se produz o piso sintético de novíssima tecnologia. Começou a ser convidado para fazer o piso de canchas de bocha de vários clubes e bares da região.
Trabalhava numa das canchas de bocha de Jundiaí (SP), quando foi chamado para atender um senhor que queria conhecer o dono de seu carro, estacionado na rua. A alegação do estranho era de que o carro – um usado de pouco valor – era seu e que fora roubado meses atrás. Martins apresentou-lhe documentos, mostrou que estava tudo devidamente regularizado, mas não adiantou. O estranho chamou a polícia e Martins e seu carro foram levados à delegacia para averiguações. Ficou provado que o estranho havia se enganado completamente, mas Martins ficou preso.
Durante as averiguações para tratar do problema do carro, o delegado puxou a folha corrida de Sérgio Martins e descobriu que havia contra ele nada menos de 12 mandados de prisão por “depositário infiel”. Os mandados estavam vencidos, mas, informado pela polícia que Martins havia sido localizado, um juiz de São Caetano revalidou no ato todo eles. Martins foi atirado numa cela úmida do “cadeião” de Jundiaí e na companhia de dois homens condenados por estupro.
Por que “depositário infiel” ? Martins descobriria só então que as máquinas que dera em pagamento por sua dívida de impostos, ainda relativa à metalúrgica de São Caetano, foram desviadas pelo leiloeiro oficial. Os órgãos arrecadadores, da União e do Estado, na sanha de cobrar as dívidas do pequeno empresário, lançaram mão dessa figura jurídica – depositário infiel – como se os equipamentos da empresa tivessem ficado em sua guarda.
Martins iria permanecer quase um mês no “cadeião” de Jundiaí. A prisão, contudo, foi pouco: o insuportável e traumático foi estar preso na mesma cela de dois estupradores. Passou o tempo inteiro sem dormir. Os demais presos tentavam, a martelo e talhadeira, abrir um buraco na cela de Martins para apanhar e matar os dois estupradores. Até hoje, Sérgio Martins têm pesadelo com o tilintar de ferro contra ferro na tentativa de arrombamento de sua cela.
Sérgio Martins só foi solto depois de pagar ao fisco o valor de R$ 32 mil, uma ínfima parcela de sua “dívida” que continua a aumentar como uma bola de neve. Já se tornou impagável há vários anos. A família não tinha o dinheiro e teve de recorrer a amigos para completar a soma que repassou à Justiça.
Como se nada disso bastasse, a perseguição persiste. Sérgio Martins teve de penhorar mais algumas máquinas e se vê obrigado a mantê-las sob sua guarda e vigilância até a quitação final do passivo tributário. Todos os seus bens – poucos imóveis e veículos velhos, caindo aos pedaços – estão indisponíveis. Seu nome está sujo, como o nome de um cidadão de terceira classe. Não pode ter firmas em seu nome, não tem acesso a crédito bancário, sente-se como alguém que foi simplesmente excluído da economia e da sociedade.
O caso de Sérgio Martins seria assustador se fosse uma exceção. No mundo do empreendedorismo brasileiro dramas iguais a esses, vividos por ele, constituem-se quase numa regra, como se trabalhar, criar empregos, contribuir com o desenvolvimento econômico e social do País, fossem crimes. A tecnocracia dos órgãos arrecadadores continua firme como “fiéis depositárias” de sua crueldade e contumaz incompetência.
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