Mais uma crise sem precedentes. Dessa vez, com uma combinação terrível de elementos de crises passadas, alguns agravados: colapso dos mercados externos, como em 2008-09; falta de liderança e ação efetiva do governo, como em 2015; paralisia do setor produtivo, como na greve dos caminhoneiros de 2018; e perspectiva de recuperação muito lenta, como no pós-recessão de 2015-2016.
A fragilidade fiscal, a difícil situação financeira de empresas e indivíduos, o espaço exíguo para políticas de estímulo e as possíveis idas e vindas nas políticas sanitárias até a imunização da população são fatores que dificultarão a recuperação.
Nesse contexto, discute-se a necessidade de evitar uma crise ainda mais grave por conta da insuficiência de crédito ao setor produtivo. Para tanto, o Congresso avança na aprovação de uma proposta de emenda à Constituição que amplia o poder de ação do Banco Central durante períodos de calamidade pública, autorizando a compra de papéis da dívida do governo e do setor privado no mercado secundário (papéis em carteiras do mercado), algo feito em economias avançadas. A intenção é aumentar a liquidez nos mercados e reduzir o custo do dinheiro.
O princípio pode parecer correto, mas requer ponderações.
Primeiro, o estresse nos mercados não é fruto de uma crise financeira/bancária como em 2008-09, mas sim de uma dramática reavaliação de cenários econômicos. A direção de causalidade agora é outra: da economia para o mercado financeiro, e não o contrário.
Os investidores globais, já bem seletivos antes da pandemia, fogem de ativos de risco e correm para portos seguros, como títulos da dívida de países avançados. A saída de recursos de países emergentes é expressiva.
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No Brasil, o quadro é mais complexo, pois havia um certo exagero no otimismo em relação ao cenário econômico e, diante dos juros baixos, uma exposição a risco nas carteiras dos investidores muitas vezes incompatível com a fragilidade da economia brasileira. O País destacou-se no passado pelos ganhos elevados, e agora, pelas maiores perdas.
Esforços para estabilizar o mercado financeiro serão pouco efetivos enquanto as incertezas sobre a extensão do isolamento social e o custo econômico não forem dirimidas.
Segundo, ainda que o mercado de dívida corporativa sofra com a falta de liquidez decorrente da postura mais defensiva de investidores, o estresse nesse mercado – dinheiro escasso e caro – reflete em maior medida o aumento do risco de calote das empresas.
É verdade que o mercado de crédito corporativo não bancário se expandiu muito – nas economias avançadas, foi alimentado pela injeção de liquidez pelos bancos centrais desde a crise de 2008-09; e no Brasil, pela queda da taxa Selic e do encolhimento do BNDES -, recomendando a ação dos governos.
No mundo avançado, os banco centrais ficaram sem opção. No Brasil, a ação do BC não trará o alívio necessário às empresas, pois o risco de crédito é elevado. Não se trata de elevar a liquidez no mercado secundário. É necessário prover garantias aos credores.
Terceiro, as políticas econômicas de países avançados não necessariamente funcionam bem em um país com instituições não suficientemente sólidas e economia estruturalmente frágil.
O BC não tem autonomia formal, deixando a instituição vulnerável a pressões para socorro; a elevada insegurança jurídica poderá gerar passivos à União futuramente; e a gestão das contas públicas é problemática. O Brasil é muito vulnerável a choques e crises.
Há muitos riscos no ambiente econômico, inclusive por conta da baixa efetividade das reações do governo à crise. Corremos o risco de as intervenções do BC representarem uma janela para mais saída de recursos do País, com os investidores aproveitando para reduzir o risco de suas carteiras.
Aumentar os poderes do BC não trará o benefício esperado e poderá abrir precedente perigoso. O período de calamidade pública talvez não seja tão curto e outros casos futuros não tão raros.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 16/4/2020