O Supremo Tribunal Federal está prestes a retomar o julgamento sobre o critério de correção monetária de débitos judiciais do setor público. Em decisões anteriores, a Corte julgou inconstitucional a utilização da Taxa Referencial (TR) para tal finalidade e decidiu que tal indicador deveria ser substituído pelo IPCA-E (uma variação do IPCA). Desta vez, o STF deve discutir se a TR deveria ser usada retroativamente, no período de 2009 e 2015, compreendendo débitos judiciais de natureza não tributária, na fase anterior à sua transformação em precatórios.
A relevância da decisão que vier a ser tomada extrapola os limites do julgamento em questão. Sabemos que os membros do mais alto tribunal do país têm clareza sobre o conceito de correção monetária e os critérios adequados para sua adoção. É preciso preservá-los, sob pena de se instalar insegurança jurídica prejudicial ao próprio setor público.
A correção monetária busca manter o poder de compra de um determinado valor. Ela não pode ser confundida com o conceito de juros, que representam a remuneração pelo uso do capital durante determinado período de tempo.
A correção monetária impede que um devedor obtenha ganhos em detrimento do seu credor, por força de mudança no valor nominal de moeda. Para tanto, aplica-se um índice de preços para reajustar o valor da dívida até o momento do seu resgate.
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Um índice de preços como o IPCA mede a inflação de um conjunto de produtos e serviços referentes ao consumo das famílias em certo período. É a medida oficial da inflação no país e baliza o sistema de metas para a inflação operado pelo Banco Central. O IPCA é amplamente utilizado para a correção monetária de valores e contratos. Desde 2016, com o teto de gastos da União criado pela emenda constitucional nº 95, o IPCA tornou-se o indexador do documento oficial mais importante, o Orçamento da União.
Quanto à TR, ela não é um índice de preços. Nunca teve a função de medir a inflação. Quando criada em 1991, representava a taxa média da remuneração de depósitos a prazo captados pelo sistema financeiro. Ao longo do tempo, várias modificações em sua fórmula de cálculo e as próprias mudanças no ambiente macroeconômico fizeram com que o indicador perdesse esse papel. Hoje, a TR não reflete qualquer taxa de juros praticada no mercado.
A TR tampouco possui relação direta com a inflação. Sua taxa acumulada nos últimos anos representa uma pequena parte da variação de preços no período. Em relação ao IPCA, a diferença acumulada nos últimos 10 anos é de 67,7 pontos percentuais. Essa distância só tende a aumentar, pois a TR não muda desde setembro de 2017.
Uma vez que a TR não guarda qualquer relação com a variação de preços da economia, é inadequado utilizá-la para corrigir monetariamente condenações judiciais contra a Fazenda, especialmente na fase “pré-precatório”. Essa prática carece de racionalidade econômica e gera prejuízos aos titulares desses créditos, pela não recomposição da perda do poder de compra da moeda no tempo. Mais, seria incoerente utilizar a TR para um período (antes da expedição do precatório) e o IPCA para outro (após a expedição). Ou seja, o impacto de se adotar a TR nessa fase dos processos é extremamente danoso aos credores.
Embora seja clara a inadequação da TR como critério de correção monetária, segmentos do setor público alegam que a aplicação do IPCA-E para atualizar monetariamente débitos fazendários em fase pré-precatório ocasionaria danos financeiros insuportáveis, o que carece de fundamento.
É preciso aqui fazer uma distinção muito clara entre a União e os demais entes federados. A insistência no uso da TR tem origem em Estados e municípios, os quais, mesmo beneficiados por várias emendas constitucionais sobre precatórios, não se utilizam dos diversos instrumentos legais destinados a quitar os atrasados e agora confiam que a Corte admita o que vem rechaçando ao longo das últimas décadas. Mais absurda ainda é a extensão de tal salvaguarda à União, que não pode alegar insolvência e há anos já utiliza o IPCA para correção de seus débitos judiciais. Por isso, a adoção desse índice não acarretará qualquer efeito econômico relevante para o Tesouro.
A questão talvez mais crucial que emerge desse processo diz respeito à insegurança jurídica. É o que decorreria de uma decisão judicial não economicamente fundamentada sobre o critério de correção monetária de débitos judiciais da União, adotando-se o uso arbitrário da TR em determinando período da duração da dívida. Precatórios foram adquiridos por investidores nacionais e estrangeiros na suposição de que se trata de dívida da mesma solidez dos títulos do Tesouro. Afinal, o emissor é o mesmo, isto é, a União.
A adoção da TR ocasionaria perdas financeiras consideráveis. Equivaleria a um confisco, confirmado pelo tribunal supremo do país, cujas decisões ao longo de sua existência primaram por garantir a segurança jurídica. A perda de substancial parcela dos créditos dos investidores criaria dúvidas sobre a disposição do Tesouro de honrar sua dívida futura. É razoável admitir que a insegurança poderia acarretar expectativas de novas mudanças arbitrárias de regras em favor do setor público, provocando a elevação dos prêmios de risco e, por consequência, o aumento do custo da dívida pública. Esse custo adicional poderia superar em muito o valor da economia que ocorreria se o STF validasse o uso da TR, que é estimada pela Tendências em R$ 5,6 bilhões, equivalente a apenas 0,1% da dívida pública federal.
Por último, tendo em vista que a remuneração dos títulos públicos constitui o piso da taxa de juros da economia, a insegurança jurídica e o consequente aumento da percepção de risco da União poderiam implicar a elevação do custo do crédito em todas as suas modalidades, prejudicando tanto as pessoas físicas que tomam empréstimos para antecipar o consumo quanto as empresas que os usam para financiar capital de giro e investimento. Além disso, a insegurança jurídica também poderia implicar um aumento do custo de capital (o retorno demandado pelos investidores), uma vez que ela afeta o risco institucional do país como um todo.
Fonte: “Valor Econômico”, 19/03/2019