A agenda do debate no país sofreu forte inflexão: os determinantes institucionais da ingovernabilidade —que eram seu elemento vertebrador— foram abandonados. O diagnóstico implícito é de que os problemas não estão ancorados no desenho institucional. As instituições entram na análise apenas com referência a uma elusiva métrica de sua robustez ou debilidade.
Desde a constituinte, a díade presidencialismo/governabilidade passou a ocupar nossa imaginação e inteligência políticas. A combinação de presidencialismo, multipartidarismo, partidos fracos e federalismo robusto —ao que se agregou a legislação eleitoral e sobre financiamento de campanhas— era vista como receita para a ingovernabilidade.
Para alguns analistas, no entanto, o exitoso caso americano (presidentes fracos, partidos fortes) mostrava que o presidencialismo não era constitutivamente instável. O problema seria executivos fortes e partidos fracos, como na América Latina.
Mas essa visão foi superada pelo argumento, que se tornou canônico entre nós, de que um presidente constitucionalmente forte, que controla a agenda congressual, é a âncora da governabilidade, e não seu calcanhar de aquiles. O multipartidarismo não seria um problema.
Houve assim inversão conceitual: o presidente-refém dá lugar ao presidente-demiurgo. O argumento, no entanto, mostrou-se incompleto: a gestão das coalizões pelo presidente importa, e o equilíbrio do jogo das relações Executivo-Legislativo depende também do Judiciário e de instituições de controle lato sensu. Afinal, a extensa delegação de poderes ao Executivo foi acompanhada de igual delegação para estas instituições.
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A turbulência institucional de 2014-2018 tem sido interpretada equivocadamente em chave hiperinstitucionalista, em que a crise seria produto de duas patologias: o presidencialismo de coalizão, do qual a corrupção seria parte integral, e a hipertrofia das instituições de controle lato sensu, que teriam levado ao jacobinismo.
Mas não há na atual conjuntura presidencialismo de coalizão! E mais: o debate sobre se os “checks and balances” e o jacobinismo judicial são excessivos mudou de registro. Busca-se defender instituições mais que reformá-las.
Na realidade, as questões emergentes —se abusos do Poder Executivo serão contidos ou se têm apoio da opinião pública, se a campanha perpétua tem impacto sobre a economia, se a polarização vulnerabiliza as instituições etc.— exigirão também análise do desenho institucional.
Ironicamente, a agenda de contenção do Executivo passa a ser considerada em chave positiva por setores que a rejeitaram visceralmente, o que irá contribuir para sua sustentabilidade.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 27/1/2020