Quando eu morava no bairro do Ingá nesta Niterói que ninguém quer conhecer, o Dr. Artur, um senhor muito rico, que vendia carros e colecionava selos, adorando enganar meninos igualmente colecionadores, resolveu encenar Shakespeare. Como morava num casarão com uma ampla garagem, sua ideia de encenar o bardo inglês em Niterói entusiasmou. Seria um mero “teatrinho de rua”, embora o autor seja extraordinariamente complexo, repetia o Dr. Artur adocicando sua fantasia.
Diante da possibilidade de recriar o mundo debaixo do controle de um texto que, na verdade, constitui as tais circunstâncias nas quais nossos projetos de vida se fazem (ou desfazem) no mundo real, as antipatias entre os vizinhos “dados” ou “metidos a sebo” sucumbiram diante da magia da ribalta.
O local no qual a peça seria “levada” não era problema porque o Dr. Artur cedeu a garagem e garantiu as vestimentas e os cenários. A garagem seria o palco; um enorme tapete velho, a cortina sem a qual nada tem início, meio e fim e não há teatro, de modo que o único problema era eleger a peça e os atores.
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Dr. Artur e Mr. Bates, um inglês que residia em frente da casa de vovô e tinha uma filha de 20 anos que adorava nos dar beijos de língua, elegeram Hamlet e eu me lembro do debate, porque muitos achavam impossível e impróprio levar à cena aquele “dramalhão” que, além do mais, era estrangeiro. Alguns, como seu Gonzaga, defensores implacáveis da “cultura nacional”, queriam um autor brasileiro. Mas seus argumentos sobre a complexidade dos temas e a dificuldade de “fazer Shakespeare em Niterói” perderam para o prestígio endinheirado do Dr. Artur e para a pose britânica de Mr. Bates.
A coisa, porém, enguiçou quando dona Francisca perguntou, num misto de piada e bom senso, quem iria fazer o papel de Hamlet. Para o Dr. Artur, o príncipe vingador seria seu neto, Arturzinho. Para ele, o papel mais adequado seria o do Rei Claudio, o envenenador do irmão. Minha avó Emerentina queria que meu tio Mario tivesse papel central, enquanto o inglês, o único que havia assistido ao drama em Londres, dizia que Hamlet teria de ser dado a uma pessoa mais experiente. Em suma: ele próprio. Houve um certo mal-estar civilizatório, mas, como sempre, venceu o poder do proprietário e o netinho foi escolhido para ser o tresloucado príncipe vingativo que recita o célebre “To be or not to be” no Terceiro Ato.
Foi quando todos se lembraram que, além de quase 50 personagens (ou seja, toda a rua), Arturzinho era gago!
Um papel daquele calibre exige um ator adequado. Ele pode ser um imbecil diante do mundo e da política, o que – disse tio Mario – é muito comum, mas tem de estar consciente do papel.
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Tempos depois, quando eu aprendi com alguns antropólogos americanos, e com o próprio Shakespeare, que todos atuamos no mundo por meio de papéis que nos são atribuídos por nossas sociedades, foi que me dei conta dessa discussão que sempre invoco quando tento compreender a nossa hamletiana sociopolítica.
Democracia não é peça de teatro de rua. É um regime revolucionário, difícil, fundado – como viu Tocqueville – na igualdade, na dissidência, na ideia básica de servir e na interdependência de poderes com funções específicas, mas complementares. Tanto no Legislativo quanto no Judiciário e, obviamente, no Executivo existem papéis especiais que demandam talentos igualmente singulares. Sobretudo o que mais falta no Brasil: a consciência dos seus limites e conflitos em função de suas metas.
O papel que mais salta aos olhos é, claramente, o de Executivo. O de prefeito, governador e presidente. Tal como ocorre com o do papa e com o dos reis, esses são cargos solitários, justamente porque são desempenhados por um só ator. Daí decorre uma imensa visibilidade ao lado de uma enorme vulnerabilidade.
O ator tem de se superar. O gago, como foi o caso do Arturzinho, foi curado, o nervoso precisa de psicólogo, o ignorante de bons conselheiros, o intempestivo e beligerante de figuras que lhe conscientizam que o momento brasileiro requer paz.
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No caso da Presidência, o papel não é apenas complexo. É muito difícil porque faculta uma autoridade que pode ser lida como onipotência, mas, ao mesmo tempo, obriga a um extraordinário controle porque em democracias o presidente é aquele que mais representa e inspira confiança, não o que manda mais…
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PS: O Hamlet do Dr. Artur foi encenado ao modo niteroiense. Foi, como disse Tia Lucília, passável…
Fonte: “Estadão”, 13/03/2019