O jornalista, escritor e político Leonardo Sciascia foi um dos críticos mais tenazes da promiscuidade entre o Estado, a Máfia e os grupos empresariais e políticos que mantiveram a Itália sob seu jugo, nas décadas que sucederam à Segunda Guerra Mundial. Ele escreveu um relato desalentador do episódio mais cruel do período: o sequestro e a agonia, em 1978, do premiê e líder democrata-cristão Aldo Moro, abandonado pela elite política e por seu próprio partido, enquanto era submetido a um pseudojulgamento, condenado à morte e executado por terroristas das Brigadas Vermelhas. Deputado e autor de um relatório na Comissão Parlamentar criada para investigar o caso Moro, Sciascia desferiu, em seu estilo sereno e racional, um golpe definitivo nas autoridades policiais incompetentes e nos políticos pusilânimes. Siciliano, Sciascia sempre combatera a corrupção e a Máfia. Mas simplesmente parecia não acreditar na força da sociedade italiana contra hábitos milenares. Conhecia de perto o princípio enunciado por seu conterrâneo Tomasi di Lampedusa no romance O leopardo: “Se quisermos que tudo fique como está, é preciso mudar tudo”.
Sciascia morreu em 1989. Se tivesse vivido para testemunhar a Operação Mãos Limpas, teria voltado a citar Lampedusa. A investigação, iniciada em fevereiro de 1992, alcançou mais de 6 mil pessoas, entre elas 872 empresários e 438 parlamentares. Levou ao exílio um dos maiores pusilânimes denunciados por Sciascia, o ex-premiê socialista Bettino Craxi. Ao final da Mãos Limpas, a classe política italiana estava tão anêmica que, num movimento felino, de leopardo, foi eleito premiê o magnata Silvio Berlusconi, envolvido nos anos seguintes num sem-número de novos escândalos de corrupção. Tudo mudara, mas nada mudara, diria Sciascia.
A Mãos Limpas é a inspiração declarada da Operação Lava Jato, comandada por um outro Moro, o juiz Sergio (nenhum parentesco). Assistimos atônitos, nos últimos dois anos, à revelação do maior esquema de corrupção jamais visto no Brasil – talvez no mundo –, cujas ramificações passam pelos contratos de estatais e chegaram, na semana passada, ao marqueteiro João Santana, responsável pelas três últimas campanhas do Partido dos Trabalhadores (PT) à Presidência. Santana é mais que um simples marqueteiro. De um jornalista de sucesso, cujo trabalho contribuíra para derrubar o então presidente Fernando Collor de Mello, transformou-se num estrategista e consultor político ainda mais bem-sucedido, ouvido nas decisões críticas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ou da presidente Dilma Rousseff. Santana também tem um lado místico. Num perfil publicado por “Época” em 2013, afirmou ter uma identificação profunda com o físico Ettore Majorana, nascido na Sicília em 1906 e desaparecido em 1938, num mistério até hoje não esclarecido.
Sciascia, com o mesmo afinco na análise de documentos e depoimentos aplicado ao caso Moro, formulou uma teoria para o sumiço de Majorana. O físico Enrico Fermi, mentor de Majorana em Roma, o considerava um gênio comparável a Galileu, Newton e, embora evitasse citar o nome do contemporâneo, a Einstein. “Fermi e os meninos procuravam, enquanto ele simplesmente encontrava”, escreve Sciascia em Majorana desapareceu, de 1975. Majorana desvendara a natureza do núcleo atômico antes do alemão Werner Heisenberg, sem publicar o resultado. Depois de uma viagem a Leipzig e de debater com Heisenberg, voltou a Roma onde, diz o relato de Sciascia, se deu conta do poder destrutivo da fissão nuclear. Largou a universidade, isolou-se em casa, mas acabou por aceitar um posto de professor em Nápoles. Semanas depois de chegar lá, antes de embarcar num barco para Palermo, na Sicília, enviou à família uma carta de suicídio. Mas não se jogou no mar. De Palermo, enviou outra carta dizendo que desistira de se matar. Comprou então um bilhete de volta a Nápoles. Não se sabe se embarcou; nunca mais foi visto. A polícia dizia que seu corpo estava no fundo do mar. Sciascia acreditava que ele simulara seu suicídio, por rejeitar a ciência que levaria à bomba atômica, e vivera os últimos anos isolado num convento siciliano, em contemplação. “O seu foi um drama religioso, pascaliano”, escreve.
“Tenho uma relação misteriosa e cotidiana com ele”, disse João Santana sobre Majorana. Santana com certeza conhece verdades atômicas a respeito dos governos petistas. A prisão, como um convento, lhe oferece uma oportunidade para contemplar e refletir sobre a questão central imposta pela Lava Jato. Será que, como a Itália da Mãos Limpas ou a Sicília de Lampedusa, voltaremos aos mesmos e arraigados hábitos, à mesma e entranhada pilhagem do dinheiro público em benefício privado? Ou, como o Majorana do relato de Sciascia, temos uma saída que preserve a honra e a decência – ainda que, para evitar o suicídio, tenhamos de sacrificar nossa identidade?
Fonte: Época, 28/02/2016.
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