Vale a pena ouvir a canção “Which Side Are You On?” (de que lado você está?). É simultaneamente música, palavra de ordem e ladainha que os mineiros de carvão do Kentucky recitavam, em 1931, quando se organizaram contra os proprietários, naquele capitalismo de tal ordem hegemônico que os trabalhadores sequer tinham o direito de organização.
A canção mostra as diferenças de um mesmo “modo de produção”, mas ela assusta ainda mais pela insistência na tomada de posição, impedindo o acordo, o jeitinho e a interdependência hierárquica que constitui um elemento básico da construção do nosso mundo social. Pois no Brasil, a questão tem sido sempre a de escolher não escolher e assim não ser antipático ou “sectário” a ponto de tomar partido e ser consequente com a individualização disso decorrente.
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Esse tomar partido abre uma reflexão sobre os laços entre Estado e sociedade. Afinal, o Estado veio para proteger, defender, ajudar e servir ou para atrapalhar? Sobretudo quando decide entrar com seu pesado legalismo ibero-nacional, cuja burocracia nasce intrincada a procedimentos que não visam a igualdade ou a destruição da dominação patrimonialista ou carismática, como queria Weber, mas que recria e garante privilégios e hierarquias, atiçando carismas. Produto da Contra-Reforma, esse gosto pela papelada, moldada nos séculos 16 e 17 com ajuda do Direito Romano no que veio a ser Portugal (e, depois, Brasil), inventa uma nova hierarquia. Nela, o Estado passa a ser o patrão da sociedade que, por força da lei, tem que obedecer às suas normas. Por isso, continuamos a fazer “revoluções” (como a de 1930) cujo protagonista é sempre o Estado – um “Estado Novo”. A grande questão não é discutir o papel do Estado, mas de rediscutir o seu papel junto de quem o sustenta: a sociedade; ou seja, todos nós e não apenas os eleitos e seus altos funcionários sustentados pelo nosso trabalho.
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Um cara sai de carro e imediatamente observa que as avenidas e ruas estão entupidas. Não se trata de engarrafamento, mas de um enfarte. Tem mais veículo do que espaço. Ato contínuo, nosso herói cai numa cratera que liquida a suspensão do seu automóvel. Mais um problema para esta semana que começa obrigando-o a pensar naquele curso de zen-budismo pela internet. Mais adiante, no confronto com um semáforo quebrado faz meses; local onde pode ser assaltado e faz com que todos tentem exercer seus velhos privilégios de família, tentando passar em primeiro lugar; ele recorda que parte do preço do seu carro foi um altíssimo imposto destinado ao aumento e à construção de vias urbanas e de rodovias. Ou seja, ele toma consciência de que o imposto enterrado no seu carro não voltou para ele na forma de uma melhoria. Muito pelo contrário, esse dinheiro tem ajudado a aparelhar o governo do momento que, sem nenhum pudor, contrata novos funcionários leais à sua ideologia, do mesmo modo que tem enriquecido e aristocratizado seus funcionários. O entupimento abre sua cabeça para esses pensamentos nada ortodoxos, já que sua educação passou pela escola, segundo a qual progresso é Estado. É obvio – ele pensa – que quanto mais eu pago ao Estado, mais ineficiente o Estado se torna. Nesse momento, chega à sua cabeça a imagem de um amigo que, partidário do governo, tem três polpudas aposentadorias e um emprego no qual não trabalha, mas despacha. O atributo mais importante deste Estado, conclui, não é servir ao cidadão, mas ser um mecanismo de aristocratização e de enriquecimento dos partidários do governo agora funcionários e administradores cujo objetivo explícito é gerenciar por gerenciar. Esse cara passa a semana nesse inferno.
No sábado, para esquecer, sai com a mulher. Seguem para um restaurante, comem e tomam umas e outras. Na volta, é parado pela blitz da Lei Seca. E nota, um tanto parvo, a eficiência prussiana do aparato estatal que o distingue com um impecável bafômetro e com agentes tão supereducados e hábeis quanto os da Gestapo, do FBI ou da KGB. Quase sorridentes, eles lhe tiram a carteira por ter tomado “dois chopes”! São tão distintos que ele não consegue sequer esboçar desculpas ou tentar o jeitinho. Fica alegre com isso e sabe que está na pátria brasileira.
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De que lado você está?, pergunta aos administradores que mecanicamente gerenciam o “Estado”. A resposta é simples: estamos do lado da cobrança e da perseguição. As ruas esburacadas, os assaltantes e a total indiferença para com o trânsito – ou seja, essa brutal ineficiência – contrasta veementemente com a eficiência da Lei Seca e dos impostos.
Agora ele sabe que onde está o Estado não pode estar o cidadão decente. Falta ao governo bom-senso e limites. Falta o sentido do lugar de um Estado moderno numa cidade moderna. Falta discutir o papel dessas imensas burocracias patrimonialistas, tocadas a ideologia salvacionista no Brasil. Daí essa gigantesca máquina boa para cobrar e negar, e péssima para concordar. Isso, pensa o nosso cara, só no carnaval!
Fonte: O Globo, 02/03/2011
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