A quantidade de erros e trapalhadas do Supremo Tribunal Federal (STF) nos últimos dias levanta uma questão difícil de responder: de onde vem tanta paranoia?
Só uma injustificável mania de perseguição pode explicar a abertura espontânea de um inquérito para apurar ataques aos ministros nas redes sociais, a censura a um site que publicou informações inócuas e desagradáveis e a recusa do relator do inquérito em ceder ao pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR) para arquivá-lo.
O aspecto jurídico que cerca cada ação nem é tão controverso:
1) Sim, o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, podia abrir o inquérito “de ofício”, interpretando com certa latitude o artigo do regimento que lhe permite investigar crimes na sede do Supremo – mas deveria ter sorteado o relator, em vez de indicá-lo por afinidade;
2) Não, o relator, ministro Alexandre de Moraes, não podia mandar o site O Antagonista nem a revista digital Crusoé retirarem do ar a reportagem em que Toffoli era identificado por Marcelo Odebrecht como “amigo do amigo do meu pai” (quer dizer: amigo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva), ainda que a informação não fosse verdadeira (era);
3) Não, Moraes não era obrigado a aceitar o pedido de arquivamento feito pela PGR, embora isso fosse a atitude mais lógica e sensata, já que ele poderá conduzir o inquérito até o fim, mas a investigação não resultará em ação penal.
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Bem mais importante que o imbroglio jurídico é o contexto político a animar a paranoia no STF. A corte desferiu neste ano um golpe contra a Operação Lava Jato, ao determinar que crimes de corrupção vinculados a caixa dois sejam processados na Justiça eleitoral.
Estava prestes a desferir um segundo golpe no último dia 10, data marcada para o plenário da Corte decidir enfim em que momento réus condenados devem começar a cumprir suas penas. Como a decisão poderia afetar a prisão do ex-presidente Lula, Toffoli adiou o julgamento, provavelmente para depois da decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a respeito do caso que levou Lula à cadeia.
Se Lula for condenado no STJ, o STF poderia determinar sem afetá-lo, como quer Toffoli, que as penas só devem ser cumpridas depois da condenação nesse tribunal – e não depois da condenação em segunda instância, como defendem os procuradores da Lava Jato e o ministro da Justiça, Sérgio Moro. Há elementos na lei para quem quer defender as duas posições, e o STF tem se esquivado há pelo menos dois anos de decidir a questão em definitivo.
O confronto entre a turma da Lava Jato e o STF se acirrou depois de dois episódios. Primeiro, a operação desencadeada pelo juiz Marcelo Brêtas que prendeu o ex-presidente Michel Temer e o ex-ministro Moreira Franco. Segundo, o movimento no Senado em favor de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar ministros do Supremo, conhecida como CPI “Lava Toga”.
Nenhum dos dois episódios teve consequências mais dramáticas. Temer e Moreira Franco obtiveram habeas corpus; a tal “Lava Toga” não chegou nem perto do número de assinaturas necessárias à abertura. Mas ambos tornaram o clima mais propício à paranoia. Foi o contexto em que Toffoli ordenou a abertura do inquérito sobre as ameaças.
De concreto, não existe nada contra os ministros do STF. Acusações de corrupção se sucedem pelo menos desde que o ministro Gilmar Mendes mandou soltar o banqueiro Daniel Dantas na Operação Satiagraha. Cada hora atingem um nome na Corte. Nunca houve prova concreta de nada.
A noção de que chamar Toffoli, quando advogado-geral da União, de “amigo do amigo do meu pai” comprove algum tipo de crime ou ilegalidade só prospera na mente de jornalistas interessados em valorizar o próprio trabalho e nos tribunais das redes sociais, onde qualquer espirro vira evidência de pneumonia, câncer ou aids.
Ao responder de modo tão desastroso a insinuações tão frágeis, Toffoli e Moraes só jogam água no moinho das teorias conspiratórias. A paranoia só faz crescer a lista de perguntas incômodas. Se estão com tanto medo a ponto de mandar censurar uma reportagem, por que será?
Desprezar o assunto, assim como ignorar as legiões de desocupados que ficam pedindo o fechamento do STF nas redes, teria sido a atitude mais sensata. Do Supremo se espera maturidade e rigor na aplicação da Constituição. Não uma leitura conveniente do regimento para justificar o uso do poder em causa própria. Muito menos censura. A paranoia é infantil e se volta contra os próprios ministros. Mais produtivo teria sido respirar fundo e, se não funcionasse, tomar um calmante.
Fonte: “G1”, 17/04/2019