De quando em vez ouvimos vozes que não pensam a vida como uma linha reta a evolver em direção ao Céu dos santos ou para o Norte do progresso que vai resolver todas as injustiças sociais, curar todas as doenças e nos livrar dos incômodos do acaso (com suas contramarchas e arrependimentos) e da finitude (com sua falta de tempo para pedir perdão ou dizer adeus). Num artigo publicado no “Globo” dia 29 de julho último, a jornalista Gail Scriven descobre que este é “O ano que ficamos vulneráveis”. E arrola, com aquela memória que eu tanto invejo nos jornalistas profissionais, os fatos que testemunham a vulnerabilidade que a tecnologia, a brutal exploração da natureza e dos outros escondem cada vez menos de todos nós. Pois, confiantes na superioridade do canhão e do arcabuz, matamos índios e transformamos seus arcos e flechas em peças de museu; certos de que o automóvel era melhor do que a carroça, inventamos esses monstros de 300 cavalos – os tais automóveis – que hoje promovem centenas de milhares de mortes no Brasil. Não satisfeitos, idealizamos a indústria baseada na exploração de um planeta lido como infinito em recursos “naturais”. Agora, mordendo o nosso próprio rabo, colhemos o fruto de um individualismo sem peias. Uma autoindulgência que revela as vulnerabilidades, porque deixa ver os erros e as injustiças entre os povos e, muito pior quer isso, a contradição entre princípios éticos. Pois, como conciliar a globalização que produz trocas e interdependência com velhos nacionalismos e fronteiras baseadas na ideia de povo eleito, superioridade racial e supremacia moral?
Como aceitar passivamente esses índices instituídos pelo triunfo da economia como uma “ciência” e das finanças como realidade dominante? No dia em que Obama se rebelou contra a agência americana que rebaixou os Estados Unidos, relativizando um princípio que sua cultura estabeleceu como dogma, ele virou Lula. E no dia em que Lula abraçou a “herança maldita do Plano Real” – criando as bases para o neoliberalismo brasileiro (farto em falcatruas) -, ele foi um presidente ianque.
Um mundo interligado é um mundo de goteiras e vazamentos. Nele, tudo muda de posição. Até a sexualidade e a fé se transformam. A solidão que era o centro de um tipo que os sociólogos clássicos leram como excepcional – o renunciante do mundo: o santo e o profeta que se afastavam da sociedade – foi, como o masculino e o feminino, o velho e o jovem, o certo e o errado, relativizada pela internet. Com os computadores, São Paulo Apóstolo enviaria suas epístolas por e-mail e teria um site; já Schopenhauer não gozaria daquela solidão essencial para a suspensão do véu de Maia – o véu na nossa própria ignorância sobre o que somos, criamos e escrevemos, mas iria resmungar de todos e com todos on-line.
Curioso essa descoberta cada vez mais flagrante de que o mundo está de ponta cabeça como o nosso carnaval. Eles, que eram modelares, tornam-se errados e falíveis – humanos – como nós. Nós, com nossa caudilhista instabilidade, permanecemos fiéis às nossas relações que são, por sua vez, o centro de nossos crimes públicos. O mundo perde em idealização exógena e colonizada (nós tínhamos de ser como os ingleses ou escandinavos, mas você quer passar uma semana em Londres ou em Oslo?) e ganha em densidade e volume. As coisas são mais relativas (e complicadas) do que supomos.
Um assunto pode ser visto de muitos pontos de vista e o posicionamento de partidos, estilos de vida e moralidades varia. Daí a vulnerabilidade que sentimos. Nos anos 50, Leslie Alva White, um antropólogo americano pioneiro e original em todos os níveis, sobretudo no político – ele havia visitado a União Soviética nos anos 20 (imagine!) e era um evolucionista numa antropologia pregada nos estudos funcionalistas -, dizia que o ponto culminante da orgulhosa trajetória humana era o controle da energia nuclear. Chegou até mesmo a fazer uma escala de sociedades, graduando-as pelo seu nível de consumo de energia. Os Estados Unidos apareciam em primeiro lugar. Escreveu suas notas numa máquina de escrever e não prestou atenção nos protocomputadores da IBM que nos deram estas páginas que você lê numa das maiores mudanças da história humana: a revolução da informação, do contato, da transculturação, do mulatismo cultural relativizador e de todas essas vulnerabilidades que nos reiteram como estamos relacionados, mesmo quando queremos nos isolar e destruir.
Coisa curiosa. Quando se pensava que o “outro lado” estava acabado – o lado que falava em dividir e pretendia retomar a humanidade dos elos humanos contra os laços de propriedade -, eis que surge essa reviravolta que obriga a repensar os elos de propriedade e de territorialidade. Sou um ou sou muitos? O que é mais importante para cada um de nós: o que nos liga às coisas que possuímos; ou o que nos liga uns com os outros? A sociedade de consumo, situada no indivíduo como fiel da balança e globalizada por uma jamais concebida interdependência comercial, perde-se no labirinto dos paradoxos coletivos. Quem é mais importante, o individuo com suas coletividades individualizadas ou as suas relações?
Um mundo sem contradições é um mito moderno e ocidental. Nele, nada está de ponta de cabeça. Mas nós, “hispânicos”, sempre tivemos carnavais e mares de lama. Agora, quando a maior sociedade burguesa do planeta corre o risco de desrespeitar as regras de um mercado que ela própria inventou, redescobrimos o que um velho barbado nos dizia faz tempo: tudo que é solido se desmancha no ar. Ou nessas redes que redefinem a vida, trazendo de volta velhas falcatruas ou novas sabedorias. Amém.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 17/08/2011
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