Crime é o maior problema do estado do Rio de Janeiro. Saneamento deve ser o segundo. No meu recente artigo A Privatização da CEDAE: Saudades Do Que Ainda Não Vivemos eu expliquei a criação da Governança Metropolitana do Rio, a entidade cuja existência possibilitou o desmembramento e a concessão de parte das operações da Companhia Estadual de Distribuição de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro – a CEDAE.
Nesse novo modelo, a CEDAE continua encarregada da captação de água e do seu tratamento, enquanto as empresas privadas (concessionárias) assumem os serviços de distribuição da água até as residências e o serviço de coleta e tratamento do esgoto (exceções existirão em alguns municípios, onde as concessionárias também farão a captação e tratamento da água).
O estado do Rio de Janeiro foi dividido em quatro conjuntos de áreas – quatro “lotes” – que estão sendo outorgados às concessionárias através de leilão. A divisão em lotes tem como objetivo evitar monopólio e garantir que as concessionárias recebam, cada uma, um lote que inclui tanto áreas desenvolvidas – com alta geração de faturamento – quanto áreas onde ainda serão necessários grandes investimentos.
Na sexta-feira, 30 de abril de 2021 foi realizado, na Bolsa de Valores de São Paulo, o leilão dos quatro lotes de concessões. Três lotes foram vendidos, com a geração de R$ 22,6 bilhões de reais em valores de outorga (outorga é o dinheiro que é pago pela “compra” das concessões).
Os contratos a serem assinados impõem às concessionárias uma série de obrigações em termos de investimentos, alcance e qualidade dos serviços. Entre outros compromissos, deverão ser investidos recursos na recuperação ambiental da Baía de Guanabara e das lagoas da Barra da Tijuca.
Esse processo foi, até agora, um caso de sucesso. Entretanto, o Rio de Janeiro não tem sido, nos últimos anos, um modelo de governabilidade ou de estabilidade política. A implantação bem-sucedida do modelo de outorga de água e esgoto dependerá, em grande parte, da existência de políticos e gestores públicos comprometidos com novos padrões de competência, transparência e governança.
Uma leitura atenta do edital, dos contratos de concessão e dos documentos técnicos revela alguns dos principais desafios que esperam as novas concessionárias.
Vale a pena dar uma olhada neles.
Os Interlocutores
Como primeiro desafio, as concessionárias terão que lidar com uma multidão de interlocutores do Estado e da sociedade civil.
No governo estadual, alguns desses interlocutores serão:
– O Instituto Rio Metrópole, braço executivo da Governança Metropolitana e entidade encarregada do Centro de Controle Operacional.
– A Procuradoria Geral do Estado
– A Secretaria da Casa Civil
– A Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro (AGENERSA), órgão regulador estadual dos serviços de saneamento.
– O Instituto Estadual do Ambiente (Inea), órgão estadual de preservação ambiental, responsável pela emissão das licenças ambientais essenciais para a realização de obras.
– A Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. É uma aposta segura que os setenta deputados estaduais irão acompanhar com grande interesse o início das operações das concessionárias. Questões como tarifas de serviço, saneamento das favelas, despoluição de rios e lagoas e reaproveitamento de funcionários da CEDAE têm potencial de gerar controvérsias e complicar a gestão dos contratos.
– O Tribunal de Contas do Estado, que tem o dever de acompanhar todos os contratos.
– O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que irá julgar as demandas judiciais contra as concessionárias.
– As prefeituras dos municípios atendidos pela concessão, e suas Câmaras de Vereadores
Para lidar com essa enorme quantidade de interlocutores, as concessionárias vão precisar de áreas de Relações Institucionais e Compliance robustas e muito preparadas.
O histórico das concessões no estado registra inúmeras interferências desses interlocutores nos contratos de concessão e na operação das concessionárias, frequentemente com efeitos prejudiciais ao equilíbrio econômico e à sustentabilidade das operações.
Os Contratos
O modelo de concessão adotado pela Governança Metropolitana, com o desmembramento das operações da CEDAE e a privatização da parte downstream dessas operações, levou à criação de um conjunto de contratos que regulam as relações das diversas partes envolvidas.
Esses contratos, que deverão ser gerenciados e monitorados, são:
– Contrato de Concessão, assinado entre a concessionária e o governo do estado, como representante da Governança Metropolitana.
– Contrato de Gerenciamento, celebrado entre os titulares do serviço de água e esgoto e o governo do estado, para regulamentar a transferência dos serviços e a transferência da regulação e fiscalização à AGENERSA.
– Contrato de Interdependência, assinado entre a CEDAE e a concessionária, com a interveniência da AGENERSA e do governo do estado, para regular a venda de água tratada.
– Contrato de Produção de Água, assinado entre o governo do estado e a CEDAE, cujo objeto é a prestação dos serviços de produção de água pela CEDAE na região metropolitana.
A gestão desses contratos é essencial para a viabilização das operações da concessionária e até para sua sobrevivência. Alterações contratuais motivadas por populismo político ou interesses não republicanos não têm sido incomuns na história do estado.
Em um caso típico, uma concessionária de transportes recebeu uma solicitação do governo estadual da época: ao invés de realizar investimentos na extensão da linha, previstos em contrato, ela deveria reformar algumas estações para uso durante a Copa do Mundo. Alguns anos depois, já em outro governo, a agência reguladora passou a cobrar da concessionária os investimentos de extensão que não foram feitos, sob ameaça de perda da concessão.
Os Comitês e Conselhos
O processo de implantação e operação das concessões será gerenciado, acompanhado e avaliado por uma série de conselhos e comitês. Os mais importantes são:
– Comitê de Transição: órgão colegiado que terá a missão de promover a interlocução e a interação entre as equipes da CEDAE e da concessionária.
– Conselho de Titulares: órgão colegiado consultivo cuja missão será coordenar e integrar as relações entre a concessionária de um determinado bloco, o governo do estado e a AGENERSA. Haverá um conselho de titulares para cada bloco de concessão.
– Comitê Técnico: comitê instituído pelo governo do estado e composto por profissionais independentes indicados pelo estado e pela concessionária, com a atribuição de solucionar dúvidas e divergências técnicas.
– Conselho do Sistema de Fornecimento de Água: órgão composto por representantes de cada uma das concessionárias, do Instituto Rio Metrópole, da CEDAE, do governo do estado e da AGENERSA, para criar interlocução e interação a respeito do sistema de fornecimento de água.
– Comitê de Monitoramento: órgão colegiado criado com o objetivo de fiscalizar as atividades desenvolvidas pelas concessionárias e pela CEDAE e exercer o “controle social” dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário. O comitê será formado por representantes das concessionárias, de entidades relacionadas ao setor de saneamento básico, de organizações da sociedade civil e defesa do consumidor relacionadas ao setor de saneamento, de “coletivos atrelados à temática do saneamento básico”, de grupos de pesquisa acadêmicos e do governo do estado.
Comitês e conselhos oferecem uma oportunidade atraente e permanente para a atuação de grupos de pressão e a promoção de interesses contrários à eficiência e a viabilidade dos serviços, especialmente em um estado conhecido pela atuação agressiva de grupos políticos com viés populista de esquerda.
As concessionárias precisam entender o cenário e modo de atuação desses grupos, e adequar seu posicionamento institucional e de comunicação.
Operação Assistida
Após a assinatura do contrato terá início a fase de Operação Assistida do sistema, que pode durar até seis meses. Durante esse período a concessionária acompanhará a operação do sistema, que será realizada pela CEDAE. A concessionará deverá mobilizar os recursos necessários para que, ao fim do período, assuma a operação.
A CEDAE tem obrigação de dar à concessionária livre acesso às informações necessárias e aos equipamentos e instalações do sistema.
Um aspecto importante a ser considerado é que toda a receita correspondente ao período da operação assistida do sistema pertencerá exclusivamente à CEDAE, a quem caberá seu faturamento e cobrança. A concessionária só começará a gerar receita depois que assumir a responsabilidade pelo sistema, no final do período.
A partir do início da operação assistida do sistema a concessionária deverá fazer o inventário de bens reversíveis – imóveis, equipamentos e instalações – cuja guarda e operação serão transferidas à concessionária.
Caberá ao governo do estado garantir a preservação dos ativos integrantes do sistema, protegendo-os contra ações de vandalismo e os transferindo à concessionária em condições de utilização e funcionamento similares àquelas observadas na data de apresentação da licitação.
A identificação e preservação desses ativos é de importância crítica para as concessionárias.
Coletor de Tempo Seco
Coletor de tempo seco é o nome dado a um conjunto de soluções de engenharia que tem como objetivo coletar as águas residuárias (águas com impurezas provenientes de descargas de diferentes origens, incluindo esgoto) que são indevidamente despejadas em galerias de águas pluviais, canais de drenagem e pequenos cursos d’água, e enviá-las para tratamento. Esse tipo de solução se chama “de tempo seco” por interceptar apenas as vazões de períodos em que não chove. O PEDUI prevê a implantação de um cinturão sanitário, que é um dos tipos de solução de engenharia de coletor de tempo seco.
O contrato de concessão do Bloco 2, por exemplo, prevê R$ 125M de investimento no coletor.
Esse é um elemento crítico da concessão, porque o coletor de tempo seco vai permitir à concessionária apresentar um resultado de curto prazo com alto impacto e visibilidade para a sociedade, evitando que o esgoto chegue aos rios, lagoas e praias.
Áreas Irregulares Não Urbanizadas
Aqui talvez esteja o maior desafio para as concessionárias do ponto de vista de imagem.
Áreas Irregulares Não Urbanizadas são as áreas de favelas e os chamados aglomerados subnormais – regiões onde não se observam as posturas urbanas ou a legislação de uso do solo e que, frequentemente, encontram-se sob o domínio de facções criminosas.
A concessão prevê a ampliação do sistema de abastecimento de água e esgoto em áreas desse tipo localizadas no município do Rio de Janeiro, embora os investimentos relizados não sejam contados para fins de cálculo das metas de universalização.
A obrigação da concessionária será restrita à realização de um determinado volume de investimentos ao longo dos primeiros 12 anos da concessão. No caso do Bloco 2, por exemplo – que inclui as favelas da Cidade de Deus, Rio das Pedras e Terreirão, entre outras – estão previstos investimentos de R$ 305 milhões.
A AGENSERSA será a responsável por verificar a realização dos investimentos.
A escolha dos locais e da ordem dos investimentos será feita em conjunto com o governo do estado e a prefeitura do município do Rio de Janeiro. Serão priorizadas as áreas que atendam aos requisitos de planejamento de urbanização pelo poder público e de maiores condições de segurança.
A concessionária deverá apresentar um plano de ação para esses investimentos no prazo de cento e oitenta dias após a celebração do termo de transferência do sistema, para análise e aprovação da AGENERSA.
Complexo Lagunar da Barra
Uma peculiaridade do contrato do Bloco 2 é a obrigação de realização de investimentos de R$ 250 milhões de reais em 3 anos para a despoluição das lagoas da Barra da Tijuca. Esse é um projeto de altíssima visibilidade, com potencial de gerar um gigantesco impacto positivo ambiental, econômico e social. As lagoas podem se tornar uma opção de lazer para os moradores e uma fonte de exploração econômica sustentável. É possível prever uma significativa valorização dos imóveis como resultado da transformação das lagoas, de depósitos de esgoto e lixo em uma atração turística e local de esportes e lazer.
Mas os desafios do projeto não devem ser menosprezados. A ausência do Estado e uma combinação nefasta de populismo, negligência, ideologia e crime organizado fez com que boa parte das margens das lagoas fosse tomada por favelas e construções ilegais, inclusive na área especificamente designada pela legislação ambiental como non aedificandi.
Todas essas favelas – sem exceção – são controladas por facções criminosas fortemente armadas, com interesses no narcotráfico e em invasões e construções ilegais. Adicione-se a isso o fato de que essas favelas constituem a base eleitoral de muitos parlamentares. O cenário é delicado e precisa ser estudado com cuidado. É essencial que a concessionária se prepare antes de se engajar com os diversos interlocutores que, com certeza, estarão interessados – nem sempre de uma forma positiva – nesse projeto.
As mesmas considerações valem para os outros blocos.
Centro de Controle Operacional (CCO)
O CCO é a entidade que irá monitorar os contratos, verificando os índices de desempenho e checando se as metas estão sendo atingidas. O CCO será montado e gerido pelo Instituto Rio Metrópole, que pode utilizar pessoal próprio, requisitar pessoal das concessionárias ou optar pela terceirização do serviço a uma empresa especializada.
Comunicação, Compliance, Governança e Segurança
Não conheço lugar mais bonito que o Rio de Janeiro. Também não conheço lugar mais complicado do ponto de vista institucional. A explicação para isso pode ser encontrada em alguns eventos históricos.
Em 1763 a capital do Brasil foi transferida de Salvador para o Rio; em 1960 a capital do Brasil passou a ser Brasília. Depois de quase duzentos anos como capital do país, a cidade do Rio de Janeiro virou o Estado da Guanabara – na verdade, uma cidade-estado – cercada pelo estado do Rio, cuja capital era Niterói. A perda de status de capital teve repercussões políticas e econômicas, aumentadas pela fusão, realizada em 1973, dos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara.
Alguns estudiosos atribuem a esses dois eventos a complexa mistura de populismo de esquerda, radicalismo, corrupção e crime que têm marcado a história política recente do estado.
Nenhuma empresa pode assumir uma concessão de serviços públicos no Rio sem uma preparação adequada para sobreviver nesse ambiente. Para isso, é essencial que sejam feitos investimentos para montar uma estrutura robusta nas áreas de comunicação, compliance, governança e segurança.
Comunicação direta com a sociedade é fundamental. É preciso informar o que está sendo feito, os benefícios que serão gerados, os desafios que estão sendo enfrentados e o impacto que os investimentos terão no futuro do estado. A concessionária cometerá um grande erro se relegar essa comunicação ao poder público.
Não é preciso enfatizar a importância da área de Compliance e Governança. Mas vale ressaltar que qualquer concessionária de serviços públicos operando no Rio precisa também de uma área de Segurança Corporativa que, além de zelar pela segurança de pessoal e de ativos, produza informações de inteligência adequadas para municiar a direção da empresa em suas decisões estratégicas e táticas.
Porta Para Futuro
Há muito tempo o Rio de Janeiro não recebe um projeto tão relevante para a sua sustentabilidade e desenvolvimento. Mas a história ensina que, em um estado com as peculiaridades do Rio, nada é fácil.
As novas concessionárias serão depositárias de enormes esperanças da sociedade, e alvo de pressões políticas, ideológicas e econômicas de todas as origens.
A Governança Metropolitana do Rio é pioneira no país, e as concessões de saneamento são sua primeira iniciativa. Todos os olhos estarão acompanhando os resultados.
O que está em jogo é mais do que o sucesso operacional e financeiro de uma concessão.
O que está em jogo são as vidas, a saúde e o progresso de milhões de pessoas.
E, nesse desafio, não há margem para erro.
Foto: Portal do Saneamento Básico