A questão dos rolezinhos não deixa de suscitar indagações, com diferentes atores políticos adotando posições segundo as suas próprias conveniências, como se se tratasse de um enigma difícil de decifrar. E assim é porque no Brasil tudo o que foge ao controle governamental ou coloca uma pequena dissidência em relação ao PT ou à mentalidade de esquerda reinante termina se apresentando como um “enigma”.
Nas jornadas de junho foi mais fácil distinguir três momentos: a) primeiro, o das manifestações em sua irrupção, caracterizadas por autonomia e espontaneidade, configurando uma expressão legítima da sociedade dizendo não às péssimas condições de mobilidade urbana, saúde e educação. Ressaltava-se uma reação da sociedade, dizendo basta à corrupção e à malversação de recursos públicos; b) segundo, a instrumentalização desses grupos pelos movimentos sociais organizados – MST e organizações afins -, pela CUT e pelo PT, procurando apropriar-se do movimento; c) terceiro, a irrupção da violência, mais conhecida como ação dos black blocs, caracterizada pela ação radical de grupos de extrema esquerda tentando apresentar-se como os verdadeiros protagonistas.
A especificidade dos rolezinhos consiste em que os momentos a e b ocorreram quase simultaneamente, enquanto o c se encontra em gestação, podendo ou não surgir conforme o desenrolar dos acontecimentos. O momento a se caracterizaria pela participação, digamos, espontânea de jovens dos subúrbios, tentando “ocupar” os shopping centers como se fossem lugares públicos equivalentes a ruas e praças. Acontece que essas manifestações foram praticamente simultâneas às dos movimentos sociais organizados, como o dos sem-teto, um braço urbano do MST, e por diferentes grupos de extrema esquerda. Houve, por assim dizer, uma confluência entre esses dois processos, fazendo que coincidissem.
Note-se que nas jornadas de junho os jovens se manifestaram nas ruas, que é o local mais adequado para esse tipo de mobilização. Não houve, em seu primeiro momento, nenhuma conotação anticapitalista, mas, ao contrário, uma indignação apartidária com os governos federal, estaduais e municipais pela péssima qualidade dos serviços públicos. Ademais, havia uma clara insatisfação com os partidos políticos e os movimentos sociais organizados.
Agora há uma diferença essencial. As manifestações estão sendo feitas em shoppings, que são locais privados, empresariais. Isto é, os manifestantes, mesmo nos genuínos rolezinhos, apesar de gostarem de roupas de grife, já se dirigem a estabelecimentos privados apagando a distinção entre o público e o privado. De um lado, identificam-se com a economia de mercado e o consumo, procurando ter mais de seus produtos; são pró-capitalistas nessa perspectiva. De outro, não respeitam a propriedade privada.
Nesse sentido, eles se tornam massa de manobra de alto potencial de manipulação, pois são mais facilmente dirigidos contra um “símbolo” do capitalismo e do consumo, que é o caso dos shoppings. Observe-se que os representantes da esquerda governamental logo fizeram declarações contra a “discriminação racial”, a favor dos “excluídos” que não seriam tolerados pelas “elites”, contra os “conservadores”, e assim por diante. Eles procuraram imediatamente colocar-se junto aos rolezinhos visando a cooptá-los e, na verdade, arregimentá-los para suas hostes. Estaria em curso um processo de apropriação dos rolezinhos na perspectiva dos movimentos sociais organizados, ao estilo sem-teto/MST, CUT, UNE e congêneres.
O que está hoje em foco é toda uma campanha de formação da opinião pública de parte desses grupos mais à esquerda, visando a criar uma mentalidade contrária aos shoppings que sirva de base às ações de ocupação/invasão. É como se os shoppings se colocassem de forma contrária à liberdade constitucional de ir e vir. Vejamos os termos dessa falácia.
Corredores de shoppings não podem ser equiparados a ruas ou praças. Os primeiros são locais que pertencem a empresas, os segundos são locais públicos. Não se pode confundir um locar com acesso público com um local público.
Se os corredores de shoppings são “ocupados” por grupos de centenas ou milhares de pessoas correndo de um lugar para outro, os frequentadores habituais desses estabelecimentos privados não têm mais nenhuma liberdade de ir e vir.
Corredores de shoppings não são pensados como locais para manifestações públicas, estão voltados para sua atividade-fim, que é comercial. Não se pode aplicar a eles a lógica das ruas e praças, que obedecem, isso sim, a outras finalidades.
Mesmo no caso de ruas, por exemplo, o poder público não permite que elas sejam aleatoriamente “ocupadas” por centenas ou milhares de manifestantes precisamente por impedirem a liberdade de ir e vir de outros cidadãos. Se isso não vale nem para as ruas, por que valeria para os shoppings?
Os tumultos ocasionados por essas manifestações em shoppings, além de desrespeitarem a liberdade de ir e vir de seus frequentadores habituais, podem suscitar medo em pessoas que lá passeiam com crianças. O mesmo se dá com idosos, que podem sentir-se ameaçados por jovens que correm de um lugar para outro.
Há uma questão da maior relevância, relativa à construção e arquitetura dos shoppings, planejados para serem visitados por um determinado número médio de pessoas, segundo um desenho específico. Não são pensados para abrigar manifestações públicas. Sua arquitetura não permite uma invasão de milhares de pessoas para correrem em seu interior, cantando e criando tumulto. Para esse efeito não importa que sejam jovens, idosos, brancos, negros, homens ou mulheres. Não há aí nenhuma questão de discriminação, mas tão somente de quantidade e de forma de manifestação.
Cuidado com a ótica ideológica, ela pode obliterar a visão!
Fonte: O Estado de S. Paulo, 27/01/2014
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