Tenho me referido à importância da I Consocial, a Conferência Nacional sobre Transparência e Controle Social, realizada em meados de maio deste ano, em Brasília, como um marco no processo da difícil, porém não impossível, superação de nossa cultura de impunidade por uma cultura de plena cidadania. O saldo das discussões nas dezoito comissões, durante três dias inteiros, foi extremamente positivo. Foram mais de 1.200 participantes encarregados de transformar as 3.400 propostas nas 80 diretrizes finais que irão subsidiar um Plano Nacional sobre Transparência e Controle Social.
A proposta recordista, com 970 votos,trata de uma questão fundamental que, se não enfrentada por nossos parlamentares na comissão especial de reforma política do Congresso Nacional, será seguramente priorizada e tematizada como campanha das organizações da sociedade civil brasileira. Seu objetivo é o de “instituir o financiamento exclusivamente público para campanhas eleitorais, com um valor limitado e igual para todos”. A resolução pretende, também, suspender os direitos políticos dos candidatos que insistirem em usar financiamentos privados. Pode-se até discordar do “exclusivamente”, mas a identificação da origem de nossas mazelas de representação política foi exemplarmente feita e consensuada.
Mas outras propostas também tiveram excelente votação. É o caso da que prevê a regulamentação, em todos os níveis da Federação, que toda e qualquer publicação de dados públicos na web seja em formato aberto (ou seja, livre de direitos ou royalties de uso), definindo planos anuais com cronogramas, aspectos técnicos, responsabilidades, indicadores e metas de abertura de dados, para facilitar sua obtenção, análise e reaproveitamento pela sociedade. Ou a proposta que prevê mais transparência no poder Judiciário, com obrigatoriedade de divulgação de prestação de contas, carga horária, folha de remuneração e outras informações de magistrados e serventuários da justiça.
Vale também comentar a aprovação da proposta, com 687 votos, que prevê a inclusão das disciplinas ligadas à cidadania na grade curricular do ensino público nacional em todos os níveis, e que dão bem a medida de discernimento que a cidadania demonstra, ao contrário dos esquerdistas apressados que baniram a disciplina sob a alegação de doutrinação da ditadura, jogando fora a criança com a água do banho. Outras propostas importantes selecionadas são as que incluem a corrupção como crime hediondo, a que acaba com o foro privilegiado de parlamentares e a que determina o fim do voto secreto nas votações nos legislativos em todas as esferas. Sem dúvida, um grande marco na evolução da cultura de cidadania no Brasil e que mostrou um inédito trabalho conjunto entre representantes do poder público (30% dos participantes), da sociedade civil (60%) e dos conselhos de políticas públicas (10%).
Mas, para além de uma das propostas mais votadas, com 385 votos, e que reputo uma das mais estratégicas, ressalto aqui a que trata de uma grande reforma nos órgãos de controle externo e interno do poder público. A importância disso é óbvia. Sem órgãos independentes, autônomos, livres do jogo político-partidário nem sempre transparente e ético, o uso adequado do meu, do seu, do nosso dinheiro nem sempre é respeitado. A proposta é extensa e engloba os mais variados dispositivos, como a proibição da liberação de verbas para obras licitadas antes de o projeto executivo estar finalizado; e a criação de um plano de prevenção à corrupção, com metas a cumprir por parte dos ministérios e secretarias estaduais e municipais.
Além das disposições que, indo mais além,prevêem mudanças de critérios para a indicação de ministros e conselheiros dos tribunais de contas da União e dos estados, dos chefes do Ministério Público e da Defensoria Pública da União e dos estados, sem que seja feita através de indicação do Poder Executivo. A ideia é dar aos órgãos mais autonomia na escolha de profissionais de carreira e concursadospara as instituições e, assim, propiciar maior eficiência, agilidade e independência nos processos. Não custa nada lembrar casos explícitos de nepotismo ou, no mínimo, pressão política indevida sobre esses órgãos, como a escolha da mãe do governador de Pernambuco Eduardo Campos, Ana Arraes, para o conselho do Tribunal de Contas da União ou, em outro caso recente, a mulher do governador do Piauí, Wilson Dias, ungida para o conselho do Tribunal de Contas do Estado, onde irá vigiar os gastos do próprio marido. Ou seja, é cada vez mais necessário que nossos legisladores compreendam de vez o grande recado desta Consocial, sobretudo no que se refere aos órgãos de controle. A cidadania quer, ou melhor, exige, maior efetividade e mais rigor na estruturação e na ação dos órgãos públicos responsáveis pela fiscalização dos recursos públicos, como a CGU, o TCU e o próprio MPU.
Fonte: Diário do Comércio de São Paulo, 11/06/2012
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