Na República, inexiste autoridade intocável. A legalidade é um bem de todos e a todos deve ser aplicada, sem distinção ou favores. Afinal, quando a lei é fracionada, a Justiça torna-se relativa. Logo, se um eventual inquilino do Planalto está envolvido em ilícitos, pode e deve ser processado nos termos da lei, assegurando-lhe as inerentes garantias da ampla defesa e do contraditório. Em sua natureza superior, a Constituição não é uma carta de privilégios aos poderosos, mas a lei que impõe a decência ao poder.
Feita a introdução, vamos aos fatos.
A partir da famigerada delação dos irmãos Batista, acusações gravíssimas foram feitas contra pessoas com presunção de inocência (artigo 5º, LVII, CF), sendo naturalmente cogente uma minuciosa e consistente análise do conteúdo relatado. Como obra de um milagre, no entanto, o delator foi tido por um falador divino, quando, sabidamente, quem delata pode mentir ou omitir toda a verdade. Aliás, a quebra do dever de veracidade (artigo 4º, §14, Lei 12.850/2013) é causa bastante para a decretação de nulidade do acordo firmado entre as partes. Ou seja, a lei não perdoa a mentira do delator.
Outro aspecto relevante diz respeito à falta de clareza nos critérios negociais adotados pela acusação. Exsurge, aqui, o dever de expressa e fundamentada motivação das eventuais relativizações punitivas concedidas ao colaborador. Embora não participe das negociações, o juiz competente, quando do encaminhamento do pedido de homologação, deve ser fielmente informado dos critérios fático-jurídicos que ensejaram as correlatas concessões acusatórias.
Tal dever de fiel informação à autoridade judicial está intimamente ligado ao princípio constitucional da individualização da pena (artigo 5º, XLVI, CF/88), tendo já sido decidido que “o Supremo Tribunal Federal junge a legalidade da pena ao motivado exame judicial das circunstâncias do delito. Exame, esse, revelador de um exercício racional de fundamentação e ponderação dos efeitos éticos e sociais da sanção, embasado nas peculiaridades do caso concreto, e no senso de realidade do órgão sentenciante” (Habeas Corpus 89.698/STF).
Adicionalmente, cabe ao juiz verificar a voluntariedade do acordo, “podendo para este fim, sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de seu defensor” (art. 4º, §7º, Lei 12.850/2013). Por assim ser, verificado qualquer indício de coação, pressão psicológica ou emocional, induzimento ou vício de vontade, é cogente o sobrestamento da homologação até o deslinde definitivo de possíveis anomalias capazes de macular a espontânea expressão do colaborador. Objetivamente, o Estado Democrático de Direito (artigo 1º, CF/88) repudia todo e qualquer método inquisitorial de acusação, pois a liberdade não pode ficar refém de abusos fantasiados em boas intenções.
Nesse contexto movediço, cabe à prudência judicial “recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais” (artigo 4º, §8º, Lei 12.850/2013). A milimétrica certeza jurídica do procedimento adotado é o pressuposto de validade da delação como meio de prova eficaz. Em outras palavras, delações ilegais não passam de meios processuais inidôneos, não tendo qualquer validade em investigações contra terceiros. Sobre o ponto, o alto magistério da Suprema Corte é firme no sentido de que “o poder de acusar supõe o dever estatal de provar licitamente a imputação penal”, pois é injustificável, “sem base probatória idônea, a formulação possível de qualquer juízo condenatório, que deve sempre assentar-se — para que se qualifique como ato revestido de validade ético-jurídica — em elementos de certeza” (Habeas Corpus 73.338/STF).
Não há dúvida de que o instituto da colaboração premiada é absolutamente fundamental no combate ao crime organizado. Todavia, sua utilização não pode ser banalizada nem resultar em violações de franquias constitucionais inegociáveis. Em síntese, a delação é uma útil novidade jurídica que pode muito, mas não pode tudo. Afinal, a vida ensina que, quando tudo é possível, a lei passa a ser um nada.
Fonte: “Estado de Minas”, 22/06/2017.
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