‘É comigo mesmo, amigo, direto comigo. Garantia nenhuma. Você pode vir e não tem negócio de nome sujo. É só chegar aqui, partir para dentro do imóvel e pagar as parcelas. Eu que aprovo, eu que sou o dono.” O convite, de um autodeclarado corretor de Rio das Pedras, foi registrado pela reportagem do G1 em outubro de 2018. O prédio que desabou no Morro da Muzema é um dos muitos imóveis erguidos pelas milícias nas favelas do Rio — e, como tantos outros, em área de risco de escorregamentos. A culpa principal pela tragédia anunciada cabe ao Estado, que exercita uma vingança eterna contra os pobres da “outra cidade”.
No lançamento do programa Favela-Bairro (1995), idealizado por Luiz Paulo Conde na prefeitura de Cesar Maia, reconheceu-se pela primeira vez que a “cidade ilegal” pertence à cidade. Mas o gesto esgotou-se no simbolismo. Depois, com o programa das UPPs (2008), anunciou-se a retomada da estratégia de integração. Mas, no fim, novamente, o espírito da vingança triunfou.
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Os nomes contam uma história. Favela indicava a “outra cidade”: o limite que separa o Estado de Direito da esfera da barbárie. Quando, por obra do eufemismo politicamente correto, favela converteu-se em “comunidade”, a sociedade do asfalto aplacou sua consciência. Mude-se o nome, para que tudo permaneça igual: a cartografia oficial não recepciona as ruas das “comunidades”, o correio não entrega cartas nas suas residências, e a polícia identifica a “cidade ilegal” como território inimigo. Ali, fora dos muros invisíveis da cidade legal, tudo é permitido.
A favela surge de um ato ilegal: a ocupação de terrenos para a construção de moradias. O ato ilegal nasce da necessidade e produz uma “outra cidade”. No Brasil, e no Rio em particular, ele gerou uma reação oficial que se reitera eternamente. A ilegalidade original contamina seus autores e, inclusive, seus descendentes, que se tornam, eles próprios, habitantes ilegais da cidade. Daí para frente, eles viverão à margem do “direito das gentes”. A favela jamais será bairro.
Na “cidade ilegal, tudo se passa como na cidade legal — com a diferença de que o poder público está ausente. As pessoas alugam, compram e vendem imóveis. Há anos, as milícias entraram no ramo da especulação imobiliária: a incorporação de terrenos, a construção de edificações e a comercialização de residências. A lei que vale é a da força. Na hora da incorporação, milicianos intimidam moradores até conseguir que vendam suas residências a preços vis, e expulsam os recalcitrantes. A construção é tocada por mão de obra sem qualificação técnica, à base do improviso. O crédito ao comprador é automático: ninguém dará calote no poder armado local.
Não culpe as chuvas. A verticalização das favelas promovida pelo crime organizado decorre da conivência estatal. Desabamentos, assim como incêndios, inscrevem-se no contrato informal que regula as relações entre o Estado e as milícias. O contrato diz, essencialmente, o seguinte: o poder público abstém-se de aplicar as leis gerais nas “comunidades”, reconhecendo-as como territórios de domínio exclusivo das milícias.
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A “lei do abate”, enunciada por Wilson Witzel (“mira bem na cabecinha…”), não deve ser confundida com uma nova disposição de estender a “lei das gentes” às “comunidades”. De fato, pelo contrário, é mais uma oscilação no ciclo pendular entre a idealização romântica do morro e a criminalização indistinta de seus moradores. O governador promete alvejar a “cidade ilegal” com disparos de snipers, não resgatar os direitos elementares de seus habitantes.
Muzema ilumina as verdadeiras dimensões do tema da segurança pública. A prefeitura do Rio contabiliza 14.204 moradias encravadas em 218 áreas de alto risco de escorregamentos, em 117 favelas. Só a restauração da soberania estatal nos territórios controlados pelo crime organizado pode oferecer um mínimo de segurança aos moradores das “comunidades”. Quando, finalmente, será interrompida a vingança eterna e legalizada à “cidade ilegal”? A favela não tem que ser “comunidade”: tem que ser bairro.
Fonte: “O Globo”, 22/04/2019