O Brasil que sai das urnas mostra ser um dos maiores laboratórios da democracia contemporânea. Os nossos 142 milhões de votantes posicionam o país no quarto degrau do ranking eleitoral, cujos três primeiros lugares são ocupados pela Índia, com 815 milhões de eleitores, os Estados Unidos, com cerca de 215 milhões, e a Indonésia, com 187 milhões.
O termo laboratório aponta para um sistema democrático em fase de consolidação, não significando, portanto, uma democracia plena, nos termos do Índice Democrático, criado pela prestigiada revista The Economist por meio de pesquisa feita em 167 países.
Nessa planilha – que leva em consideração categorias como o processo eleitoral e o pluralismo, as liberdades civis, o funcionamento do governo, a participação popular e a cultura política – ocupamos a 45ª posição, ao lado de países de democracia imperfeita, dentre os quais, pasmem, estão democracias de forte tradição como a francesa (29ª), a italiana (31ª) e a grega (32ª). A Índia, por exemplo, está na mesma faixa do Brasil, ocupando o 39º lugar.
São visíveis os sinais de que temos dado vigorosos passos no caminho do aperfeiçoamento, bastando considerar que há 50 anos o país entrava na escuridão de um golpe militar que durou 21 anos, tendo fixado as linhas mestras de sua democracia apenas a partir de 1988, com a chamada Constituição cidadã, que veio atender as demandas da sociedade organizada.
Sob uma pletora de liberdades, direitos e deveres, garantidos pela CF, realizou-se o pleito mais competitivo das últimas décadas. A animação da vida cívica que se viu constitui expressiva amostra da efervescência inerente às democracias incipientes. Não há motivo para assombro.
Se formos projetar os tipos de voto dados aos candidatos da situação e da oposição, domingo passado, encontraremos pontos em comum com as competições de outros países. Em maio deste ano, por exemplo, o partido nacionalista da Índia obteve vitória esmagadora sobre o partido do Congresso, acabando com 10 anos de poder da dinastia Ghandi-Nehru, deteriorada (sabem por quê?) pelo precário crescimento do país e por uma batelada de escândalos de corrupção.
Já nos Estados Unidos, a votação dos democratas é geralmente associada a grupos e setores avançados, progressistas, simpáticos às causas sociais; os votos republicanos são oriundos de polos conservadores nas áreas dos costumes (contra o aborto, contra o casamento gay e a legalização de drogas), dos valores morais e da economia (defesa do Estado-mínimo, redução de impostos, privatizações, fim de programas sociais etc).
Não se trata simplesmente de comparar as eleições no seio das democracias para concluir que todos os países são assemelhados nesse quesito, mas pinçar a hipótese de que existe uma razoável carga de conteúdos comuns às nações democráticas. Parcela do acervo temático é gerador de animosidade entre grupos e partidos, contribuindo para o acirramento do debate, extrapolando o campo das ideias para entrar na vida íntima dos atores políticos.
A campanha negativa, empreendida pelas duas bandas, foi a marca mais forte da competição. O alto teor de agressividade, expresso por candidatos e seus gurus, lembrou a histórica disputa de 1989, quando Fernando Collor, que acabou vitorioso, jogou no ar o bombástico depoimento da enfermeira Miriam Cordeiro dando conta de um pedido de Lula da Silva, de quem era companheira, para cometer um aborto.
Ora, as insinuações malévolas produzidas pelos dois lados na arena eleitoral não diferem da bateria de insultos e acusações que os competidores democrata e republicano desfecham entre si na campanha norteamericana. Lá, a “linguagem da lama” (mudslinging) é frequente e intensa, sendo usada de forma intensa na mídia eletrônica. Por aqui, essa estratégia acabou sendo usada pesadamente e com efeitos deletérios. Cada exército lutou por sua meta: de um lado, a continuidade do ciclo petista, de outro, a abertura de uma nova era.
A mais disputada peleja da contemporaneidade refletiu a fisionomia cultural do nosso corpo político. Mais que uma luta esganiçada entre regiões, como incautos chegaram a enxergar, o que se viu foi uma batalha entre duas forças: uma, abrigando o voto material; outra, o voto valorativo. A primeira reúne os contingentes atentos às coisas materiais, concretas, como os pacotes assistencialistas do governo – bolsa família, minha casa, luz para todos, minha casa, minha vida etc.
O sufrágio ligado ao bolso e à barriga foi despejado nas urnas, sobretudo, pelas massas que dependem do Estado. A segunda força votou na carta de valores: a ética, a dignidade, a seriedade, a moral, tendo como pano de fundo, o repúdio aos escândalos e às denúncias. A previsível dualidade balizou o pleito até o final. O voto material suplantou o voto valorativo. O que não significa que as duas modalidades se repartiram plenamente. A petista também teve voto valorativo e o tucano ganhou voto material.
A explicação para tal composição estava escancarada, mas passou ao largo da percepção da campanha tucana: a maior base eleitoral do país ainda situa-se nas margens e no primeiro andar da classe média (C), que votam olhando para o bolso. Apelo a valores é, para eles, uma abstração.
A cultura desse aglomerado tende a repartir o lixo imoral da corrupção por toda a esfera política. Por isso, a pregação de princípios éticos não comoveu as margens, tão somente consolidou a opinião dos “convertidos”, a banda que já decidira o voto no senador mineiro.
A tuba de discriminação que se espraiou pelas redes sociais – culminando com abordagens defendendo a divisão do país -, a par de leitura enviesada de resultados (os dois tipos de votos permearam a votação em todas as regiões), funcionou como canal da livre manifestação, mostrando, ainda, intensa participação do eleitor no processo político. Mais um atestado de vitalidade democrática.
Não há razão para temor em relação ao amanhã. A divisão das urnas é o mais eficaz antídoto contra o autoritarismo.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 2/11/2014
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