Todo regime democrático tem problemas, e prova mais clara deste ponto é a crise presidencial da primeira democracia de massa do planeta, a americana. Qualquer investigação vai demonstrar que o regime democrático moderno não pode ser reduzido às suas dimensões econômicas, mas deve ser lido, como ensinou Marcel Mauss, como um “fato social total” — a democracia é um estilo de vida que afeta todos os espaços de nossas vidas. Ele produz tanto um Roosevelt e um Obama quanto a KKK e um Trump.
Motivada, como compreenderam Marx e Polanyi, pelo desejo desabrido (e legitimado como virtude e talento) de ganhos e empoderamentos infinitos, ofertados num mercado ou palco, a dinâmica democrática seria sempre sujeita a crises ou vista como burla.
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Para tanto, basta lembrar que a democracia liberal é o único regime aberto à proposta de sua destituição, conforme vimos na Europa dos socialismos de esquerda e de direita. Tais desvios são o resultado de um paradoxo: a democracia liberal é o único regime explicitamente aberto à autocorreção.
No caso do Brasil, o experimento democrático tem promovido um permanente clamor contra a desordem, a roubalheira e o aumento da desigualdade — questões a serem sanadas pelo retorno da boçalidade dos salvadores da pátria. Ou seja: reestabelecendo privilégios, impedindo acabar com a consciência de inferioridade, com a aristocratização por meio do Estado, com um sistema educacional destinado a garantir a desigualdade; e, como faz a elite, malandramente mantendo um sistema político alinhavado por semi-ideologias e abençoado por amizades instrumentais. Tudo isso produziu uma estratificação social impecável, na qual todos têm um lugar e todos sabem do seu lugar. Para o nosso lado mais atrasado, o ideal seria não ter mais que lembrar aos inferiores (que pensam serem nossos iguais) com quem eles estão falando!
Como dar liberdade aos seus inimigos, dizem os reacionários de direita; e como, dizem os de esquerda, ter essa liberdade que rompe tabus e leva a desigualdades?
Sofremos a nostalgia do império e dos regimes ditatoriais que o imitaram. Neles, não havia bate-boca, imprensa livre, denúncias negociadas, juízes e procuradores independentes, e a crise, cujo incômodo maior é a constatação da corrupção estrutural e contraditória dos eleitos.
Nos impérios, governa-se por “direito divino”. Deus abençoava o governante de sangue azul, cujo poder transcendia às forças deste mundo. Pensar que grandes impérios tenham tido como base dimensões fora deste mundo permite uma visão mais clara da revolução republicana, a qual abriu o sistema de poder a todos os seus membros que não são mais acólitos ou súditos de ninguém, exceto de si mesmos. Nela, a família imperial não é mais a dona do Brasil ou a personificação da civilização europeia depauperada nos tristes trópicos. Agora — eis o desafio insuportável — somos administradores de nós mesmos. A chamada “coisa pública” pertence a todos e não pode ser apropriada nem abandonada por ninguém. O traço distintivo das democracias não é uma casta, classe, partido, família ou casa, mas consciências individualizadas e livres.
A passagem de um todo abençoado por Deus à sua parte mais insignificante e mortal — o ser humano individualizado, republicanamente visto como um cidadão detentor de direitos inerentes à sua condição — é um feito de extraordinária coragem e um projeto capaz de desafiar não somente reis e ditadores, mas os deuses!
Não é por acaso que as democracias sejam muito mais predispostas a terem problemas do que a preveni-los. Não é também por acaso que elas são odiadas por partidos totalitários e por boçais que não suportam dúvidas.
A globalização inventou sua ideologia. Ela põe em foco o planeta como um sujeito do individualismo. Se não há mais limites transcendentais, há o limite planetário, que é a nossa totalidade — o nosso palco.
O Brasil vive num oceano de crise, mas o que fazer com o nacionalismo isolacionista de Donald Trump, cuja fúria pode destruir o planeta e cuja proposta de censurar um livro que o critica como presidente perturba a mais estável experiência democrática do mundo?
O retorno do proibir como um direito dos que um dia foram proibidos é bem conhecido entre nós. Bem como a convivência com uma pervertida e insuportável contradição entre atores e papéis. Não nos surpreenderia descobrir um santo que jamais acreditou em si mesmo porque sabe de sua salafragem.
O globalismo é tão bipolar quanto as múltiplas éticas brasileiras. A América vai ficando mais parecida conosco e — queiram as fadas — nós com ela, mas não em tudo…
Fonte: “O Globo”, 10/01/2018
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