Nos últimos anos, o governo brasileiro tem patrocinado inúmeros fóruns e conferências que abusam de expressões como “conselhos populares”, “democracia participativa”, “conselhos de direitos humanos”, “conselhos ambientais”, ativando, assim, na agenda política brasileira, o tema da participação do povo em decisões nacionais por referendo, plebiscito e consulta popular direta, como se dessa maneira estivesse assegurado o seu caráter democrático e participativo.
Evidente que a participação do povo é legítima, principalmente porque promove o engajamento popular na prática da cidadania e é adequada para fiscalizar e impor assuntos locais e simples que estão ao alcance de sua compreensão e avaliação. Mas o Brasil de hoje não é a Atenas de Péricles ou a Genebra de Rousseau. Em comunidades maiores e heterogêneas, essa tão falada interação entre Estado e sociedade civil acaba servindo ao redentorismo populista para instituir uma ficção de democracia, viciada por cooptação tendenciosa. Quando o processo ocorre via intermediação de conselhos ao estilo dos soviets, que “escanteiam” o sistema representativo constitucional clássico, a participação supostamente popular tende a ser pautada pelas facções orquestradas pela vontade messiânica do poder orquestrante, que decidem “no grito” a suposta vontade coletiva.
O perigo do redentorismo ideológico é iminente. Se a verdadeira democracia “social” é uma miragem — perguntam os mais exaltados —, para que serve uma democracia meramente formal e “burguesa”? A confusão de acepções chega a ser de tal monta que o próprio sentido da democracia é deturpado em função de um linguajar baseado numa doutrina “superior” dos direitos humanos e sociais, como se a democracia em si propusesse a igualdade social.
Assim, a democracia representativa se torna a bola da vez, com propostas de sua substituição progressiva pela democracia dita participativa. A linguagem utilizada é a da busca de uma sociedade mais justa e solidária. Dá-se como pressuposto que a democracia representativa apresenta “falhas”, “defeitos”, que podem ser corrigidos por sua complementação ou mesmo substituição. No entanto, quando vem à tona o significado dessas novas palavras, surgem as verdadeiras definições, como se a verdadeira sociedade justa e solidária fosse a que nasceria da destruição do capitalismo, definido como fonte de todos os males. Mais concretamente, a sociedade “justa e solidária” vem a ser identificada às propostas comunistas e socialistas dos irmãos Castro e de Hugo Chávez, transmitindo a ideia de uma democracia dispensável e descartável.
Causa espanto que propostas ditas inovadoras ainda permeiem o ideário de tantos intelectuais brasileiros, que imaginam o advento da verdadeira democracia como um big bang rousseauísta: um contrato igualitário, instantâneo e simultâneo de todos com todos. Dificilmente haverá em toda a história do pensamento político uma construção mais utópica do que essa — mas, curiosamente, é a ela que mais vem recorrendo à intelectualidade latino-americana, supostamente tão familiarizada com o pensamento histórico.
Mas, afinal, a quem interessa essa maior participação popular nas decisões políticas se inexoravelmente existirão grupos de interesses prontos a impor seus anseios na pauta do dia? Não seria uma espécie de salvo-conduto para qualquer tipo de arbitrariedade? Por exemplo, invasões de terras e terrenos teriam agora novas justificativas e amparo legal, como se o estado de direito não mais existisse.
As organizações “revolucionárias” teriam em mãos um poderoso instrumento de ação política, aparentemente balizado por uma decisão legal para destruir de vez o ordenamento jurídico do país. Ou até mesmo as pressões das manifestações desordeiras, corporativas ou populares, similares às praticadas pelo fascismo italiano e pelo nazismo alemão nos seus períodos de ascensão e pelo governo João Goulart nos primeiros anos 1960, que invocavam a massa manipulada em apoio às intenções vanguardeiras, seriam banalizadas ou relativizadas em prol do bem comum.
De fato, essas novas alternativas de participação, presentes, inclusive, em discussões sobre a reforma política, apenas escamoteiam os interesses de uma minoria muito bem organizada partidária ou ideologicamente. “Democratizar” a sociedade por meio da participação direta e colocar a energia popular a serviço do desenvolvimento é um desafio para as próximas décadas. Os avanços tecnológicos e a presença das mídias sociais na internet, por exemplo, são um pontapé auspicioso para uma maior participação direta dos interessados no processo político. O que não se pode permitir é que, na busca de uma “verdadeira” democracia, as instituições representativas sejam substituídas por uma outra forma de administração dita participativa.
Assim, quanto mais as pessoas desconsiderarem a democracia, mais suscetíveis se tornarão de assimilar outras propostas políticas, que têm como finalidade instaurar formas de democracia totalitária. A regra é a seguinte: isola-se um instrumento, diz-se que ele é democrático, e faz-se um uso deformado dele.
Fonte: “O Globo”, 16/08/2010.
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