Nem mesmo o assassinato de um líder oposicionista na Venezuela abalou a presidente Dilma Rousseff a considerar a possibilidade de acionar, contra o regime chavista, a cláusula do Mercosul que prevê a suspensão daquele país, cujo governo viola a democracia e os direitos humanos. Ao contrário: Dilma diz que não é o caso de punir a Venezuela porque os crimes cometidos reiteradas vezes pelo autocrata Nicolás Maduro e seus sequazes são apenas “hipóteses”. Segundo ela, é preciso um “fato determinado”.
A presidente, portanto, não considera o cadáver do opositor Luis Manuel Díaz, morto no dia 25 passado, um “fato determinado”, mas uma “hipótese”. Ela também quer fazer crer que não leu ou ignorou os diversos relatórios de organizações de defesa dos direitos humanos produzidos nos últimos tempos sobre a deterioração da democracia e do Estado de Direito na Venezuela. Nesses relatórios há uma montanha de fatos determinados.
Fiel à política externa lulopetista, que transformou a diplomacia brasileira em instrumento do PT, Dilma sempre reserva o benefício da dúvida aos governos ideologicamente alinhados a seu partido. Mais do que isso: ela chegou a subscrever uma nota do Mercosul, no início de 2014, na qual se sugeria que o único fator a abalar a normalidade democrática na Venezuela não era a notória truculência chavista, e sim a ação da oposição, e que Maduro sempre esteve interessado no diálogo. Na ocasião, a repressão a protestos oposicionistas deixou dezenas de mortos e terminou com a prisão de vários manifestantes, a maioria dos quais sem acusação formal – e muitos deles permanecem encarcerados sem julgamento.
Enquanto o Mercosul embalava o autocrata venezuelano, o Parlamento Europeu detalhava, em alentado relatório, a perseguição que Maduro empreendia contra a oposição – que incluiu tortura sistemática dos presos políticos, impunidade e ausência de garantias processuais, além do desmonte das instituições que garantem a democracia, especialmente o Judiciário. Assim como esse relatório, vários outros foram publicados ao longo desse tempo com informações semelhantes, e nada mudou na Venezuela de lá para cá.
Durante muitos anos, o regime chavista alegou que a democracia na Venezuela era plena porque havia eleições, cuja lisura foi atestada por observadores internacionais. Trata-se de uma óbvia impostura, pois não há democracia se a imprensa não é livre, se os opositores vão para a cadeia e se os juízes não são independentes. O voto, em si, não é nem nunca foi sinônimo de democracia – basta notar que não são poucos os ditadores que usam eleições para se legitimar.
Agora, no entanto, nem mesmo esse simulacro de democracia resiste na Venezuela. Diante da iminência de perder as eleições legislativas do próximo domingo, Maduro decidiu arrancar de vez a máscara de “democrata” e mandou avisar que não aceitará outro resultado que não seja a vitória de seus correligionários. Além de recrudescer a intimidação a oposicionistas, Maduro impediu que a votação seja acompanhada por observadores independentes. O cadáver do oposicionista Luis Manuel Díaz é apenas o último dessa série de “fatos determinados” que Dilma preferiu ignorar.
Já está claro que, na visão da presidente petista, a cláusula democrática do Mercosul só pode ser aplicada contra os adversários do bolivarianismo. Foi o que aconteceu com o Paraguai – o país foi suspenso do Mercosul em 2012 porque seu Congresso destituiu o presidente Fernando Lugo. Para Dilma, que articulou a punição ao Paraguai, pouco importava que o processo tivesse respeitado o que mandava a Constituição do país. O que interessava era tirar do caminho os paraguaios, adversários do ingresso da Venezuela no Mercosul.
Agora, quando deveria demonstrar estatura diplomática e aceitar que a cláusula democrática do Mercosul deve se aplicar a todos os que ofenderem as liberdades tão duramente conquistadas, Dilma prefere ver apenas “hipóteses”. Mas a única coisa hipotética na Venezuela hoje é a democracia.
Fonte: O Estado de S.Paulo, 04/11/2015.
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