A “interação democrática entre Estado e sociedade civil como instrumento de fortalecimento da democracia participativa” (Decreto 7.037, de 21/12/2009, referenciado aos direitos humanos) ativou na agenda brasileira o tema da participação do povo em decisões nacionais por referendo, plebiscito e consulta popular direta ou via intermediação de assembleias ou conselhos – tema eivado por possibilidades, limitações e riscos.
A participação do povo tem, de fato, algum sentido racional. Ela promove o engajamento popular na prática da cidadania e é adequada para auscultá-lo em assuntos locais e simples que o afetam diretamente e estão ao alcance de sua compreensão e avaliação. Mas em comunidades maiores e heterogêneas e/ou para assuntos complexos corre o risco de deturpação por cooptação viciosa, que se vale da apatia ou do despreparo da massa vulnerável ao engodo – vulnerável até à redação capciosa da consulta, condicionadora da resposta. A democracia participativa de Péricles e a de Rousseau, 2.500 anos depois, eram adequadas a Estados pequenos, de população e “religião cívica” homogêneas, como a Atenas de Péricles e a Genebra de Rousseau, e mesmo nelas a participação era seletiva (Atenas era escravocrata…). Não foi cogitada para o voto universal em Estados extensos, com grandes populações heterogêneas, em parte despreparadas em assuntos complexos.
Nessas circunstâncias, a participação prescindente da intermediação da representação política – que, embora com defeitos, grandes no Brasil, é portadora de delegação do povo e inclui na sua processualística mecanismos de correção de seus erros – acaba servindo ao redentorismo populista para instituir uma ficção de democracia, viciada por cooptação tendenciosa. Quando o processo ocorre via intermediação de conselhos ao estilo dos soviets, que “escanteiam” o sistema representativo constitucional clássico, a participação supostamente popular tende a ser pautada pelas facções orquestradas pela vontade messiânica do poder orquestrante, que decidem “no grito” a suposta vontade coletiva.
A democracia participativa é, portanto, válida nos limites de suas possibilidades locais e simples, em que a percepção e o interesse direto do povo são capazes de protegê-lo da mobilização viciosa (um exemplo simples: o gabarito em determinada área urbana). Excepcionalmente, também para assunto mais amplo, até nacional, mas isso é raro e deve ser precedido por esclarecimento isento. Como regra geral, é imprópria para territórios e contingentes populacionais imensos e heterogêneos, de limitada capacidade para avaliar e opinar com conhecimento de causa sobre assuntos complexos, alheios ao dia a dia cultural e local. Qual o porcentual de brasileiros aptos a opinar com convicção sobre, por exemplo, parlamentarismo versus presidencialismo (o que são e se ajustam, ou porque não se ajustam às circunstâncias brasileiras), autonomia do Banco Central, câmbio flutuante, superávit primário e células-tronco? Com certeza, pouco expressivo, indicativo da inadequabilidade em assuntos complexos, por vezes exigentes de conhecimento especial.
Em países de razoável nível cultural e democracia consolidada, a participação universal direta é pouco praticada: suas credíveis representações políticas eleitas atendem à conveniência e ao sentimento nacional (exemplo relevante da excepcionalidade: os referendos nacionais ao estatuto da União Europeia, viabilizados pelo bom padrão cultural médio das populações consultadas). Já o voluntarismo populista messiânico inerente às democracias mambembes tende a ver nela ferramenta útil ao autoritarismo salvacionista plebiscitado, em que prevalece o redentorismo ideológico, quando não o personalista à Hugo Chávez, sobre as instituições representativas pluralistas. Tende a ver ferramenta útil nela e em seus associados: as pressões das manifestações desordeiras, corporativas ou populares, similares às praticadas pelo fascismo italiano e pelo nazismo alemão nos seus períodos de ascensão e pelo governo João Goulart nos primeiros anos 1960, que invocavam a massa manipulada em apoio às intenções vanguardeiras. O Brasil está sujeito a esse tipo de política falsamente democrática porque a isso o predispõe a vulnerabilidade do seu povo à cooptação pelo esbulho.
Em suma: é razoável admitir que, embora a democracia participativa possa ser um instrumento complementar, seletivo e limitado da democracia representativa clássica, não é seu substituto em qualquer circunstância ou situação. Quando além de suas possibilidades racionais, suas consultas assembleístas ditas populares, seus plebiscitos e referendos tendem a se transformar em instrumentos supostamente democráticos, de apoio ao Poder mais bem capacitado – capacitação financeira, reguladora, normativa e fiscalizadora/coativa – para usar a paranoica máquina persuasória da comunicação moderna e os mecanismos da administração pública, em prol de seus desígnios. Naturalmente, o Executivo, com o consequente eclipse relativo dos demais Poderes e a deterioração da democracia.
Usada comedidamente nos limites de sua adequabilidade sensata, dependente da compatibilidade do assunto com a capacidade popular de discernir sobre ele imune à cooptação viciada, a democracia participativa é democracia. Extrapolada além de suas possibilidades e limitações, é farsa supostamente democrática, útil ao embuste da democracia popular, que transforma instituições representativas clássicas em instituições de fachada, desconsidera a democracia em seu processo tradicional e adjudica a virtude democrática às vanguardas, acima do sistema judicial e das representações políticas escolhidas pelo voto.
A diretriz do decreto é, de fato, simpática e sedutora, mas exige atenção criteriosa: seria perigoso aceitá-la sem o cuidado que impeça seu uso vulnerável ao redentorismo utópico ou populista demagógico, prejudicial à democracia.
* Publicado originalmente em 14/02/2012
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