Em novembro de 1999, teve início, na cidade de Seattle, no estado norte-americano de Washington, a terceira Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC). Diplomatas e representantes de diversos países foram até aquela cidade para lançar nova rodada de negociações comerciais.
O encontro tinha como objetivo servir como marco inicial de negociações para ampliar o escopo de atuação da OMC – incluindo na sua agenda temas variados, como investimentos, compras governamentais, facilitação do comércio, entre outros. Entretanto, o que aconteceu em Seattle foi assustadoramente inesperado. Dezenas de milhares de manifestantes reuniram-se em protesto – que rapidamente se tornaram violentos.
Lojas foram saqueadas e partes da cidade foram sitiadas. Policiais de Seattle dispersavam os manifestantes com balas de borracha e bombas de efeito moral. A Conferência foi iniciada somente em 1º de dezembro. Estimativas conservadoras indicaram que mais de 40 mil pessoas tomaram as ruas da cidade — um número sem precedente para uma manifestação contra uma negociação comercial técnica. Diante desse cenário, as negociações não avançaram e o encontro foi rapidamente encerrado. Nova rodada de negociações multilaterais seria lançada apenas dois anos depois, na remota cidade de Doha, no Catar.
Os eventos ocorridos naquela Conferência Ministerial, em novembro de 1999, ganharam o apelido de “a batalha de Seattle”. Os motivos dos protestos eram variados – porém, o que parecia unir os manifestantes eram preocupações múltiplas com o atual estágio de desenvolvimento do capitalismo global e seus efeitos distributivos. Aqueles protestos eram, em essência, antiglobalização.
A OMC era, sobretudo, um símbolo. Os manifestantes a acusavam de representar os interesses das corporações transnacionais, de promover o desrespeito aos direitos humanos e aos direitos trabalhistas, de incentivar práticas econômicas ambientalmente danosas, além de provocar o desemprego e flagelos sociais variados. A batalha de Seattle foi forte evidência dos conflitos que a globalização começava a despertar.
Esse sentimento de insatisfação com os rumos da globalização é bastante comum hoje. Pode ser visto na retórica contra o “neoliberalismo” na América Latina; nos discursos de Donald Trump; no resultado do referendo que culminou com a saída do Reino Unido da União Europeia; no debate político na Polônia ou na crise pela qual passa a Grécia.
Esse descontentamento – especialmente em países ricos, como EUA e Reino Unido – não se assemelha em nada com a euforia que predominou nos países ocidentais início da década de 1990. A queda do Muro de Berlim em 1989 e o fim da União Soviética em 1991 coroaram longo processo de consolidação do capitalismo como o sistema hegemônico de organização econômica e social.
Durante a Guerra Fria, a disputa entre EUA e União Soviética era pautada simultaneamente por uma disputa de sistemas (democracias de mercado versus comunismo) e uma disputa entre superpotências (Estados Unidos versus União Soviética). Com o fim da disputa, a ordem internacional passou a viver não só um momento de hegemonia norte-americana; passamos a viver também a hegemonia de um sistema de organização econômica e social — as democracias de mercado.
O triunfo das democracias de mercado foi objeto de famoso estudo apresentado por Francis Fukuyama, professor da Universidade John Hopkins. A tese de Fukuyama – publicada em 1992, no livro “O fim da história e o último homem” – postulava que o debate político-filosófico sobre como melhor promover o desenvolvimento econômico e social havia sido resolvido em favor dos princípios da filosofia liberal. Fukuyama demonstra com detalhes como a história do último século evidenciou a superioridade econômica, social e moral dos países com democracias de mercado consolidadas sobre seus sistemas competidores – fascismo, nazismo, comunismo e nacionalismos populistas.
A tese era polêmica. No entanto, os argumentos de Fukuyama foram rapidamente simplificados: “a disputa havia sido ganha”; “o jogo acabou”; “o capitalismo e a democracia venceram”; “a história não teria mais para onde avançar”. Sem dúvidas, grande parte da repercussão – e das críticas – que o livro recebeu esteve relacionada a essa simplificação.
Fukuyama demonstra que, independentemente das preferências individuais, é fundamental entender que as atuais democracias de mercado são produtos da evolução histórica. As democracias de mercado não foram frutos da mente de um gênio ou um projeto de único ator, por mais poderoso que tenha sido. As democracias de mercado originaram-se de múltiplos experimentos sociais que tinham como objetivo ampliar alguns componentes básicos da natureza humana: procura na diferenciação individual, maximização racional de interesses, aspiração de liberdade. Esse sistema de organização social foi construído paulatinamente, em pelo menos trezentos anos de distintas batalhas, por meio de diferentes disputas sociais, econômicas e políticas – entre as quais se destacam a revolução inglesa, a revolução francesa, a revolução americana e a revolução industrial.
Com a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, não haveria, na opinião de Fukuyama, sistemas capazes de concorrer com as democracias de mercado como solução para a organização social. Hoje, apenas vestígios de nacionalismos populistas ou de fundamentalismos religiosos poderiam ser classificados como sistemas concorrentes. Contudo, não chegam a constituir propostas plausíveis de organização social para amplas parcelas da humanidade. Apenas nesse sentido teríamos atingido o “fim da história” de Fukuyama.
Hoje, grande parte dos conflitos políticos, sociais e econômicos do mundo contemporâneo não ocorre por meio de uma disputa entre sistemas diferentes – porém dentro das democracias de mercado. A retórica anti-imigração nos EUA e na Europa; a nova ascensão do nacionalismo; as crescentes críticas ao acordos de livre comércio são apenas alguns sintomas das contradições geradas pelo encontro de uma economia de mercado capitalista sofisticada com um sistema democrático pujante.
No final do século 20, a hegemonia das democracias de mercado foi construída a reboque da globalização. Mas a globalização veio acompanhada de um paradoxo: enquanto promovia prosperidade, acarretava custos distributivos diferenciados. A globalização, por sua natureza, é conflitante – ela reorganiza a divisão do trabalho, onde e como a produção é feita, onde e como os investimentos são realizados. Os custos distributivos diferenciados criam grupos de vencedores e de perdedores. Isso gera protestos, insatisfações e o sentimento de que a inserção em uma economia globalizada seria um processo injusto e desigual.
Qualquer processo que leve a mudanças na produção, a alterações nos salários, a maior concorrência, ao descarte de empregos gera desconfortos. Há favorecidos e prejudicados. Esse processo ocorre por meio de uma “destruição criadora”. A destruição criadora é um conceito apresentado pelo economista austríaco Joseph Schumpeter em seu livro “Capitalismo, socialismo e democracia”, de 1942. Esse conceito descreve o processo de inovação, por meio do qual novos produtos e formas de produção destroem empresas velhas e antigos modelos de negócios. Pensem no Uber versus Táxis – uma transição que, bem sabemos, tem gerado disputas políticas acirradas.
Para Schumpeter, o crescimento de longo prazo de uma economia de mercado capitalista é movido pelas inovações tecnológicas, ainda que essa inovação possa destruir outras empresas e meios de produção já estabelecidos, porém ultrapassados. Esse processo nunca será indolor. A destruição criadora gera perdedores. Os ganhos serão difusos na sociedade – e as perdas, concentradas em alguns setores. Uma sociedade sensível a demandas democráticas não poderia simplesmente ignorar os grupos de perdedores, suas demandas, preocupações e insatisfações.
Mundo afora, as pressões desses setores condicionam a política por meios diversos. Distintas sociedades possuem diferentes necessidades e preferências sobre como as instituições devem organizar suas economias e seu capitalismo doméstico. Isso permite concluir que: um mundo totalmente sensível às disputas democráticas não será capaz de alcançar a plena globalização.
Hoje, as democracias têm-se demonstrado insatisfatórias na produção de consensos críveis para fornecer respostas adequadas aos desafios econômicos. Os choques provenientes da união entre mercados abertos e democracia é um tema fundamental para analisar e entender a política contemporânea – da ascensão de Donald Trump ao Brexit, do futuro do Mercosul à integração comercial dos países do pacífico.
O equilíbrio entre mercado e democracia tem sido tênue. Em países desenvolvidos, há claras demonstrações de que distintos grupos querem o fechamento das fronteiras, querem impor leis anti-imigrantes e reverter tendências de integração de mercados. Mas há também quem procure criar em seus países uma rede de proteção social que possibilite diminuir os custos associados às mudanças econômicas trazidas pela globalização – mantendo vivo, porém, o fluxo de capitais, pessoas e produtos.
A história demonstra que o desenvolvimento econômico e a prosperidade não se conquistam numa economia fechada. Contudo, não se pode tampouco fechar os olhos para os custos distributivos que uma economia aberta inevitavelmente gera. A divisão política contemporânea não é tanto entre esquerda e direita, mas entre abertura e fechamento. O equilíbrio entre democracia e mercado é essencial para sustentar o desenvolvimento humano. Hoje, o principal desafio, seja das economias emergentes ou das desenvolvidas, é aprimorar as regras e a estrutura do jogo para tornar possível a continuidade do próprio jogo.
O texto não representa a opinião do Ministério das Relações Exteriores.
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