A manchete da Folha de S. Paulo de terça-feira passada jogou luz sobre uma das mais soturnas caixas-pretas da administração federal: o uso de verbas públicas em campanhas publicitárias. Planalto pulveriza sua propaganda em 8.094 veículos, informou a chamada no alto da primeira página. A reportagem, assinada por Fernando Rodrigues, conta que de 2003 até hoje houve um aumento de 1.522% no número de órgãos de imprensa que recebem recursos federais como receita publicitária. Eram 499 em 2003 e somam hoje 8.094. Mas – atenção – não houve um crescimento significativo do gasto total. Os dois governos Lula investiram, em média, R$ 2,3 bilhões por ano em publicidade (aí incluídos os custos de produção das campanhas, mais as verbas de patrocínios destinadas a projetos esportivos e culturais), valor que não se distancia substancialmente do que foi empregado na gestão de Fernando Henrique Cardoso. A diferença entre eles foi o que a reportagem da Folha chama de pulverização.
No linguajar de apoiadores do governo atual, a palavra mais adequada não seria pulverização, mas “democratização”. Ontem, em discurso no complexo industrial e portuário de Suape, em Pernambuco, o próprio presidente Lula foi ainda mais retumbante. Vangloriou-se de ter resolvido “socializar” o dinheiro de publicidade. A tese do discurso do presidente e de seus apoiadores é primária: dar recursos públicos a muitos soa mais “democrático” do que dá-los a poucos. Verdade? Não necessariamente. Demagogia? Sem dúvida. Primeiro, porque o grosso do dinheiro foi para os veículos dominantes – como sempre, o principal foi para os de sempre. Depois, porque o atual governo usou alguns trocados não para tornar a sua comunicação mais eficiente, mas para fazer média com os jornais e as emissoras de menor porte.
Antes de entender – e desmontar – as justificativas do discurso oficial de “democratização”, lembremos que, sobre esse assunto, os governos se sucedem sem detalhar valores. Publicidade oficial, como já foi dito, é caixa-preta. O contribuinte não sabe quanto cada veículo recebeu dos cofres públicos e sabe menos ainda sobre os resultados dessas campanhas, pulverizadas ou não Os bilhões de reais despejados em propaganda rendem popularidade para quem governa, mas até hoje não se tem uma única prova de que realizem algo de bom para o interesse público – que, por definição, deveria ser apartidário. Se esses dados fossem divulgados, ficaria explícito que a verba de publicidade oficial vem sendo administrada, no Brasil, mais para melhorar a imagem de políticos (e massagear o ego e o caixa dos empresários de comunicação) e menos, muito menos, para atender ao interesse público.
Nesse quadro, falar em “democratização” é quase um deboche. O gasto do Planalto em propaganda é uma enormidade: R$ 2,3 bilhões correspondem a quase um terço do que a Rede Globo faturou com publicidade ao longo de 2009. Na escala de grandeza do nosso mercado publicitário, é uma fortuna. O Estado brasileiro é um Estado anunciante: somadas, as campanhas dos governos federal, estaduais e municipais alcançam cifras escandalosas e vêm estatizando uma fatia expressiva do mercado.
Além de deboche, a palavra “democratização” é um biombo novo para encobrir um vício velho: o uso de dinheiro público para amaciar a imprensa privada. Essa prática já deveria ter sido varrida pela cultura democrática, mas está aí, intacta, e cresce a cada ano. Não deveria ser assim. Quando compra espaço publicitário, o agente público deveria orientar-se pelo dever de buscar o melhor serviço pelo menor preço. Deveria buscar o veículo que lhe dá acesso à audiência pretendida nas melhores condições. Ponto. Quanto a isso, a compra de espaço publicitário pelo Estado não é diferente da compra de aparelhos de ar-condicionado, de computadores ou de vacinas. Há agentes públicos que se vangloriam de distribuir a verba publicitária de acordo com a participação dos veículos no mercado, dando a esse critério um peso aparentemente absoluto. É claro que se devem levar em conta as audiências gerais de cada veículo quando se concebe uma campanha governamental, mas esse não é nem deve ser o fator decisivo. Se fosse, o Estado deveria comprar vacinas não pela qualidade, mas pela participação de cada laboratório no mercado. Compraria um pouquinho de cada laboratório. O mesmo deveria ser feito com a compra de aparelhos de ar-condicionado e de computadores. Enfim, se esse for o critério determinante, teremos de dizer adeus ao princípio – democrático – das licitações.
O argumento mais grave e mais falacioso, no entanto, é outro. Há burocratas que posam de justiceiros e garantem que “pulverizando” as verbas fortalecem os veículos “alternativos” contra a “mídia conservadora”. Parece incrível, mas é o que dizem. Ora, se o governo quer estimular a diversidade da imprensa, que crie linhas de fomento, com financiamentos que possam ser – aí, sim, democraticamente – disputados pelos interessados, mediante regras públicas e transparentes. Usar dinheiro de publicidade para fortalecer os “alternativos” não consta das diretrizes legais para a publicidade oficial. Esse argumento, portanto, não tem sustentação legal. Se o gestor público que favorece jornaizinhos de parentes age mal, aquele que dá uma força aos sites dos correligionários age mal do mesmo modo. Nos dois casos, o servidor extrapola o seu poder discricionário. E, mais do que isso, deixa claro que, para ele, não importa se a mensagem oficial será recebida e compreendida pelo público esperado; seu negócio é fazer média com os veículos.
Concentrada nos grandes ou “democratizada” nos pequenos, a publicidade oficial tem sido a moeda dos governos para relações promíscuas com a imprensa. Até quando?
Fonte: O Estado de S. Paulo, 30/12/2010
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