Uma cartilha do Inep esclarece que posicionamentos ofensivos aos direitos humanos podem zerar as redações do Enem. Uma decisão liminar do STF proíbe zerar redações por esse motivo, mas não soluciona o problema da avaliação ideológica: é possível reprovar sem usar o zero eliminatório. Os exemplos do Inep sobre o que não deve ser escrito abrangem pregar a tortura, o linchamento ou o banimento de crenças religiosas. Tudo parece óbvio, no mundo do óbvio. Fora dele, surgem as indagações relevantes, que remeto ao MEC.
1. “A universalidade dos direitos humanos é um mito criado pelas democracias burguesas ocidentais”. O candidato pode escrever isso sem perder pontos?
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Segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os direitos humanos são universais pois existe, acima das nações, religiões e culturas, uma identidade humana universal. Mas a Arábia Saudita não ratificou o documento, alegando que ele contraria a lei islâmica e, em 1982, o governo iraniano qualificou-o como “uma interpretação secular da tradição judaico-cristã”. Surpreendentemente, o próprio MEC diverge do caráter universal dos direitos humanos: um parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE/CP Nº 3/2004) dedicado à educação das relações étnico-raciais diz que os educadores devem esclarecer “a respeito de equívocos quanto a uma identidade humana universal”. Então, senhores, como fica o candidato que escolher o lado da Arábia Saudita e do Irã (e do MEC!) contra a Declaração de 1948?
2. “As cotas raciais para vestibulares e concursos públicos violam o princípio constitucional da igualdade legal dos cidadãos”. O candidato será punido se escrever tal sentença?
O STF consagrou o sistema de cotas raciais, traduzindo livremente o princípio fundamental da construção de “uma sociedade livre, justa e solidária”. Mas a Constituição proíbe, literalmente, a discriminação de cor ou raça e garante o “acesso aos níveis mais elevados do ensino segundo a capacidade de cada um”. Como fica o candidato que optar pela letra da Constituição, em detrimento de uma criativa decisão do STF?
3. “A prática do infanticídio ritual em grupos indígenas deve ser punida pois viola o direito à vida e as leis do Brasil”. Isso incorre na ira da banca examinadora?
A Funai não age para coibir a prática. A Associação Brasileira de Antropologia sustenta que coibi-la violaria os direitos humanos dos índios, agredindo sua identidade cultural. Como fica o candidato diante de interpretações opostas dos direitos humanos?
4. “A campanha da ONU para erradicar a mutilação genital de mulheres em sociedades tradicionais da África e da Ásia é um gesto arrogante de neocolonialismo cultural”. Vale ou não?
A ONU apoia sua campanha no princípio do combate à violência contra as mulheres. A crítica à campanha, nos termos da frase anterior, deriva de antropólogos e até de alguns movimentos feministas. No debate, onde se situa a “cartilha da norma política correta” do Inep?
5. “Israel é uma aberração que precisa desaparecer: um Estado colonialista e racista que impõe um apartheid contra os palestinos”. Perde nota, por antissemitismo, quem clamar pela extinção de um Estado e do direito à autodeterminação nacional dos judeus? Ou a posição, defendida por movimentos de esquerda (e, na “Folha de S. Paulo”, por um ex-presidente da Empresa Brasileira de Comunicação), tem amparo no guarda-chuva dos direitos humanos?
6. “O aborto deve ser proibido pois atenta contra o direito à vida dos fetos”. A opinião pode ser expressa ou será classificada como um atentado aos direitos das mulheres?
7. “Precisamos instituir a pena de morte, tal como existe em diversos estados dos EUA”. Vale ou viola o direito à vida?
8. “Liberdade de expressão tem limites. Temos que impedir, com todo o peso do direito penal, ofensas contra a religião, como sátiras envolvendo Jesus ou Maomé. O Charlie Hebdo não cabe no Brasil.” Ok?
As perguntas estendem-se ao infinito. Nas sociedades plurais, partidos e movimentos políticos diferentes oferecem suas próprias interpretações sobre os direitos humanos — e, exceto nos casos mais simples, primitivos e brutais, estão cobertos pelo manto de liberdades que protege o debate público. O MEC quer, simultaneamente, tratar os candidatos como cidadãos adultos, solicitando-lhes posições sobre temas sociais complexos, e vetar-lhes o exercício da liberdade de opinião?
O Enem funciona como concurso público e, como tal, está legalmente obrigado a seguir regras explícitas cristalinas. Hoje, porém, navega nas águas turvas da exegese ideológica — isto é, do puro arbítrio. No fundo, a liminar do STF evidenciou que o exame move-se fora da lei, infringindo a regra de ouro da neutralidade ideológica do Estado. A solução ridícula seria produzir algo como uma bula papal, detalhando a verdade estatal sobre os direitos humanos. A alternativa é abandonar o modelo vigente, inventado por doutrinadores, e avaliar os textos com base em critérios semânticos, gramaticais, de estilo e consistência argumentativa.
Fonte: “O Globo”, 16/11/2017
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