A independência dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, inerente à democracia e necessária ao exercício de suas atribuições, é complementada na Constituição pela harmonia entre eles. No funcionamento objetivo dos Poderes não tem havido manifestações expressivas de desarmonia, mas há uma de natureza corporativa que se eterniza: a desarmonia salarial, que situa o Judiciário, o Legislativo, o Ministério Público e algumas categorias do Executivo excepcionalmente assimétricos – no serviço público e mais ainda no universo brasileiro assalariado em geral.
O quadro anômalo inclui nuanças de difícil avaliação quanto ao certo ou errado. Mas – exemplos simbólicos – o que dizer da disparidade salarial entre motoristas que dirigem o mesmo tipo de carro, no mesmo trânsito, para juiz de tribunal superior ou senador e para autoridade do Executivo? O que explica serem os salários da base de apoio do Congresso Nacional superiores aos de categorias de instrução superior do Executivo – médicos e professores, por exemplo? A remuneração de segurança do Senado é de R$ 13.800 (mídia 14/2). O que a justifica – 22 salários mínimos – superior à de coronel do Exército? Exemplo inspirado em comentário do então presidente Lula (mídia, 27/6/2009): por que a remuneração de engenheiro que constrói uma estrada é inferior à do auditor do Tribunal de Contas da União (TCU) que fiscaliza o processo? Seria o gabinete em Brasília, mais desconfortável e insalubre?
Consciente de que a redução da desarmonia pelo aumento significativo das remunerações deixadas para trás seria incompatível com a saúde fiscal do Estado, mas propenso a deslanchar um processo corretivo, ainda que gradativo, o Executivo enviou ao Congresso, em 1989, projeto de lei que pretendia regular a matéria e esclarecer expressões constitucionais equívocas, cujas interpretações flexíveis facilitam a indução de desarmonia. Expressões como “vantagens de caráter individual e relativas à natureza e local de trabalho” e – esta particularmente complexa – “cargos com atribuições iguais, ou assemelhadas”.
O projeto foi arquivado porque feria a independência dos Poderes (no caso, a corporativa, mantida incólume a funcional) e a solução praticamente não tem avançado. A Emenda Constitucional n.º 19 (1998) eclipsou o ideal isonômico do Texto Constitucional de 1988 (utópico em sua plenitude, mas ao menos referência contra distorções excessivas) e na fixação das remunerações introduziu expressões também melífluas, tais como “a natureza, o grau de responsabilidade e a complexidade dos cargos” e “as peculiaridades dos cargos”, que mantêm a flexibilidade subjetiva na interpretação, respaldando a desarmonia. Reafirma que “os vencimentos dos cargos do Legislativo e do Judiciário não podem ser superiores aos pagos pelo Executivo”, deixando em branco as questões: que cargos correspondem a que cargos (questão que exige regulação por lei)? Os acréscimos que alimentam a desarmonia se incluem nos vencimentos?
A emenda admite (não impõe) o estabelecimento de relação-limite entre a maior e a menor remuneração no serviço público. É improvável que esse dispositivo se concretize: porque, se instituído, o aumento no topo da pirâmide rebocaria o da base, na verdade, o de toda a pirâmide, criando uma carga fiscal inviabilizadora. Reboque justo: as “perdas da inflação”, sempre citadas para justificar pleitos de revisão salarial, estendem-se a toda a pirâmide e são mais sensíveis na sua base! Ademais, o que seria exatamente a remuneração da relação-limite? Ela incluiria “para valer” a miríade de vantagens, como manda a Constituição?
Essa dúvida tem amparo num fato instigante da realidade vigente: o limite máximo da remuneração explícito na Constituição federal – o “subsídio” de ministro do Supremo Tribunal Federal, hoje cerca de 45 (!) salários mínimos -, nele “…ncluídas as vantagens pessoais e de qualquer outra natureza…”, não tem obstado exceções exuberantes. A pletora de salários públicos que excedem o “limite máximo” constitucional resulta de sentenças judiciais ou de normas corporativas vistas como legais, ao amparo do direito impreciso. E a prática prossegue desinibida, apesar das críticas sensacionalizadas na mídia, logo esquecidas na permissividade complacente da sociedade.
O Brasil não comporta um quadro de salários públicos em razoável harmonia no paradigma de nível alto que hoje atende a alguns segmentos. E para que a moderação exigida pela responsabilidade fiscal seja justa é necessário compartilhá-la, é preciso, ao menos, reduzir as manifestações de desarmonia exponencial. A harmonia razoável e suportável pelo erário é um desiderato complexo e demorado, provavelmente mais hoje do que teria sido há 22 anos, porque ao longo desse tempo cresceu e se consolidou a força corporativa de categorias poderosas. O que exatamente seria ela terá de ser pensado no processo, considerados criteriosamente as qualificações e o empenho realmente exigidos pela natureza, responsabilidade, complexidade e pelas peculiaridades dos cargos (critérios do texto constitucional). É provável que o processo tenha de incluir artifícios polêmicos, como seria, por exemplo, a adoção temporária de ritmos de aumento distintos, redutores da desarmonia no longo prazo.
Sem atabalhoamento – porque na democracia não há solução mágica e o problema é, de fato, complexo -, é preciso ser desencadeado algo nesse sentido. Não será fácil rever concepções entendidas como legais e/ou já consuetudinariamente praticadas, não será fácil esclarecer preceitos que, embora supostamente devessem servir à ordem racional, acabam dando espaço corporativo subjetivo à ambiguidade indutora de desarmonia. Ocorrerão manifestações de discordância, mas a lógica da harmonia – se não a ideal, pelo menos a razoável e possível – haverá de prevalecer.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 04/04/2012
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