Volta à normalidade? A ideia sedutora do tempo circular, do retorno ao ponto de partida, não ajuda a decifrar a paisagem pós-pandemia.
Os analistas que apostam numa ordem global mais kantiana — isto é, mais integrada e cooperativa — erram tanto sobre a partida quanto sobre a chegada. Os pratos da balança inclinaram-se ao nacionalismo antes da pandemia e suas consequências acelerarão o curso do fechamento. Na “Foreign Policy” de 20 de março, Stephen Walt opinou que a pandemia “reforçará o Estado e o nacionalismo”, provocará um “retrocesso na globalização” e “criará um mundo menos aberto, menos próspero e menos livre”. Hobbes, não Kant.
Henry Kissinger, em artigo recente, chamou os EUA a rememorar os motivos que o levaram a erguer a arquitetura de cooperação internacional do pós-guerra. A suspensão do financiamento americano da OMS evidencia que Trump escolheu o caminho oposto.
O G7 só produziu palavras vazias. Os EUA isolaram-se na sua crise sanitária interna, que revelou ao planeta o despreparo governamental e os assombrosos níveis de exclusão social da superpotência. Na mesma “Foreign Policy”, Kori Schake prevê que os EUA “não mais serão vistos como líder internacional” pois “falhou no teste da liderança”. Como resultado do fracasso americano, a China ganhou a guerra da Covid, apesar do ocultamento inicial da epidemia e da fabricação de estatísticas altamente suspeitas.
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No pós-guerra, o rival era a URSS, uma potência fechada no casulo geopolítico e econômico do bloco socialista. O rival de hoje, a China, pelo contrário, é uma potência conectada às redes da globalização. O triunfo chinês sobre os EUA no teste da pandemia não só amplia sua influência internacional como delineia uma aura de eficiência em torno de seu modelo autoritário de capitalismo de Estado. O conceito nacionalista de Trump sai fortalecido da emergência mundial. Mas, ironicamente, a vitória doutrinária é de Pirro: representa uma derrota estratégica para os EUA.
“Nosso maior desafio desde a Segunda Guerra Mundial”, disse Angela Merkel, referindo-se tanto à Alemanha como à União Europeia (UE). A UE desapareceu na hora em que o tsunami do vírus atingiu a Itália e, diante do dilema do resgate econômico, repetiu a cisão Norte/Sul verificada uma década atrás, na crise do euro. A Espanha clamou por um “novo Plano Marshall”, intra-europeu, baseado na mutualização das dívidas emergenciais, e ganhou os apoios da França e da Itália. A Alemanha resistiu, uma vez mais, à emissão de títulos europeus (eurobonds), secundada por Holanda e Áustria. O bloco caminha sobre gelo fino.
A emergência sanitária devasta as economias europeias enquanto se desenrola a conclusão do Brexit — e sob as nuvens escuras da erosão da aliança transatlântica. Sem a parceria com os EUA, explicou Kissinger anos atrás, a Europa ficaria à mercê da China, reduzindo-se a mero apêndice da Eurásia. Merkel referiu-se a esse argumento quando, em janeiro, admitiu que, “como europeus, precisamos refletir agudamente sobre nossa posição no mundo”. Agora, diante da pandemia, a Alemanha deve encarar o que o espanhol Pedro Sánchez definiu como uma “encruzilhada crítica” na qual se decidirá a sobrevivência da UE.
“Um mundo menos aberto, menos próspero”. O Japão ensaia um programa de “repatriação” em massa de suas multinacionais estabelecidas na China, por meio de bilionários subsídios governamentais. Nos EUA e na Europa, dirigentes de corporações globais reavaliam os riscos embutidos nas extensas cadeias de suprimentos que conectam o Oriente ao Ocidente. O espectro de novas pandemias e o precedente das quarentenas alteram os cálculos econômicos de custos, gerando uma tendência à reaglomeração das cadeias produtivas.
Simultaneamente, os EUA invocam esquecidas leis de guerra para compelir a GM a fabricar respiradores hospitalares, e os países europeus alargam o conceito de ativos nacionais sensíveis para incluir a produção de equipamentos médicos, remédios e vacinas. Hobbes: a estratégia, razão do poder, impõe-se ao lucro, razão do capital. Chegamos à era da “desglobalização”?
Fonte: “O Globo”, 20/4/2020