O Brasil é um país absurdamente desorganizado. Nossa desorganização é tamanha que sequer conseguimos pagar nossas contas em dia. A realidade está aí aos olhos de todos: estados e municípios estão quebrados, enquanto o déficit federal astronômico apenas estimula a ciranda do rentismo financeiro, potencializando o endividamento público. A origem do problema não é de ordem arrecadatória: nossa carga fiscal é alta e deveria cobrir com folga as obrigações do problema. Ou seja, nossos esforços de racionalização e eficiência governamental devem recair na ponta das despesas estatais, pois é indubitável que gastamos muito e mal.
Ora, a lei não é feita de pedra. Logo, quando a vida muda, a legislação também deve mudar.
Estabelecida a premissa básica, fica claro que não podemos seguir vivendo com regras previdenciárias do tempo da brilhantina. Felizmente, nos últimos 50 anos, tivemos impressionantes avanços civilizatórios como o aumento da longevidade, uma acentuada melhora da qualidade de vida e das condições do trabalho humano. Moral da história: as regras previdenciárias atuais ficaram completamente antieconômicas e desatualizadas, sendo a reforma em marcha no Congresso Nacional uma medida absolutamente necessária para o equilíbrio das contas brasileiras e a consequente retomada de nossa capacidade de investimento.
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Sim, a reforma da Previdência vai ser aprovada, pois há uma evidência pública de que o atual estado de coisas ficou insustentável. No entanto, a indispensabilidade da reforma realça a necessidade do bom debate sobre questões sensíveis. Um dos pontos mais polêmicos diz respeito à criação de um “novo regime de previdência social, organizado com base em sistema de capitalização, na modalidade de contribuição definida, de caráter obrigatório para quem aderir”. Tal proposta, em linhas gerais, rompe com o tradicional modelo de solidariedade social da previdência pública, instaurando um regime de contas vinculadas e reservas individuais, facilitando, assim, o acompanhamento e transparência da poupança previdenciária de cada trabalhador brasileiro.
Mas nem tudo são flores no paraíso da terra. O sistema de capitalização impõe dificuldades de longo prazo importantes. Objetivamente, a gestão previdenciária é um baita negócio financeiro: durante praticamente 3 décadas, recebe-se religiosos aportes mensais para pagamento de um incerto valor futuro. Aliás, a incerteza do valor ganha relevo com a escolha do modelo de “contribuição definida”, a saber: a contribuição se dará sobre bases certas, mas o benefício de aposentadoria futuro dependerá das movediças variáveis inerentes ao regime de capitalização, tais como rendimentos financeiros do período, inflação e segurança jurídica das regras do jogo.
Nesse contexto, como bem aponta a inteligência superior de André Lara Resende, os países em desenvolvimento, como o Brasil, possuem surtos de acelerados crescimentos episódicos que acabam por desaguar em períodos prolongados de crise e estagnação. Diante de nosso histórico acidentado, entre milagres e tragédias econômicas, é fundamental o estabelecimento de balizas normativas que garantam a manutenção do valor aquisitivo das contribuições individuais que gerarão o futuro benefício previdenciário. Sobre o ponto, há disputas judiciais no presente que indicam a necessidade de melhores regras positivas.
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Ilustrativamente, na primeira fase de desenvolvimento do sistema de capitalização previdenciária, de natureza privada, não faltaram exemplos de práticas financeiras desleais que, após os anos de recebimento das contribuições cheias, vieram a pagar benefícios de aposentadoria a menor, mediante o uso de indexadores fictícios. Por assim ser, a garantia de um índice de correção monetária que resguarde a efetiva inflação do período deverá ser um imperativo normativo, evitando-se que o cassino financista deprecie, ilicitamente, o devido valor das aposentadorias futuras.
Por fim, a autorização da chamada “capitalização nocional”, sem qualquer tradição jurídica no direito pátrio, amplia as margens de incerteza do modelo proposto. Não se trata, frisa-se, de temer o novo, mas de apenas exaltar a necessidade de bem regrar direitos de fundamental importância na vida dos cidadãos brasileiros. Além disso, a importação acrítica de fórmulas estrangeiras não raro se transforma em fonte de inefetividade normativa, pois a lei, para pegar, deve estar intimamente concatenada com o pulsante substrato cultural da vida vivida. Não adianta querer resolver o Brasil de frente para o Atlântico e de costas para a Rocinha.
Hora, portanto, do bom debate político. Afinal, inexiste reforma legislativa perfeita, sendo a frontal dialética democrática o melhor caminho do possível.
Fonte: “Gazeta do Povo”, 13/05/2019