A semana passada foi marcada por três eventos especiais.
O primeiro e o que mais nos consternou foi o desastre na Linha Amarela, no Rio de Janeiro, onde um caminhão com a carroceria levantada e trafegando em horário não permitido destruiu uma passarela, causando cinco mortes.
O segundo foi o cavalo de batalha criado pela escala semissecreta da presidente da República em Lisboa, Portugal, depois de sua estada em Davos, Suíça; antes de sua momentosa visita a Cuba.
E o terceiro, o de maiores implicações no campo das rotinas financeiras e políticas, foi o anúncio da promulgação da lei que vai punir as ilegalidades cometidas por empresas, tomando-as como pessoas jurídicas. Punindo a empresa como um todo, o que na prática significa a impossibilidade de se assistir à costumeira culpabilização dos funcionários miúdos como bodes expiatórios. Ademais, a lei explicita vultosas penalidades monetárias, além das criminais, à empresa. Torço que ela pegue, pois, se assim ocorrer, ela vai ser um instrumento importante para controlar a corrupção.
A ligar esses eventos eu vejo atitudes rotineiras — aquelas coisas que fazemos sem pensar.
Comecemos com o caso da passarela.
A fiscalização obviamente aumentou. Mas será que mais fiscalização resolve? O problema do espaço público no Brasil é saber se precisamos de mais leis ou de mais educação relativamente a essas leis. Em outras palavras, ao lado de uma de fiscalização eficiente, é preciso que as leis sejam colocadas dentro de cada um dos cidadãos — tanto dos usuários quanto das autoridades e administradores. É esse tipo de educação igualitária que nos falta. Ela tem a ver com o debate entre o modo pelo qual uma nova lei vai conviver com velhos hábitos. Fiscais e policiais são, é claro, fundamentais, mas é preciso ir além deles. Sem tal movimento é quase certo que a lei “não pega” — ou seja: ela vai ser fatalmente canibalizada e neutralizada pelos velhos hábitos.
Para não ser multado, o sujeito faz um desvio e acaba causando um acidente. A “bandalha” revela uma propensão ao risco típica, como revelo no meu livro “Fé em Deus e pé na tábua”, do modo de dirigir e de usar o espaço público no Brasil. O eufemismo minimiza o delito ao mesmo tempo que desculpa usuários faltosos e autoridades lenientes e irresponsáveis. Todo tipo de motivação pessoal suspende o bom senso e as normas que dele derivam, mas que o motorista e o pedestre ignoram ou não internalizam. Todo mundo tem consciência de que as “autoridades” usam o “você sabe com quem está falando” e são autoridades precisamente porque ficam acima da lei e do bom senso. Por que, então, eu devo obedecer se quem é importante não obedece; e a regra geral não é a transparência, mas é ter dois pesos e duas medidas? Uma para os nós e outra para os outros?
Eu estava num elevador lotado. Na parada no 7º andar, cinco ou seis pessoas vão entrando indiferentes a quem estava no veiculo. Com um sorriso despreocupado um deles diz: “Entra, sempre cabe mais um…” Fomos diretos para o fosso. Uma senhora gritou muito e eu entrei em pânico.
Vou abastecer e o frentista fuma tranquilamente segurando a bomba de gasolina. Apavorado, eu menciono o fato e mostro a placa onde lemos: “Proibido fumar”. “Não tem nada não”, diz o frentista, me olhando como se olha para o policial ou o fiscal. “Eu estou acostumado”.
Tentei dar uma aula de segurança. Se persistisse, acabaria brigando.
Vou ao banco e nos caixas eletrônicos destinados aos idosos, deficientes e grávidas encontro uma jovem pagando um maço de contas. Cruzo os braços e, p. da vida, espero. Mas não digo nada porque reclamar é feio e eu não quero criar caso. Foi assim que me ensinaram e ensinaram aos que me ensinaram e ensinaram aos que ensinaram aos que me ensinaram.
Troquei um automóvel por outro na mesma agência e com o mesmo vendedor. Ele, porém, não fez a transferência da propriedade do veículo para a empresa. Comecei a receber multas, pois o carro continuava sendo meu. Reclamei várias vezes. Afinal processei a agência e fui ao tribunal. Lá, o acusado não era a empresa, mas o vendedor, que havia sido despedido. O magistrado mandou que me pagassem R$ 1.200. Eu me senti injustiçado. Espero que isso mude com a nova lei.
Vamos seguir para Lisboa. Lá abastecemos e, em seguida, voamos para Cuba. Alguém assim decidiu, diz o meu lado ignorante das regras de segurança nacional.
Quando a presidente diz que ela própria paga seus jantares e não usa cartão corporativo, um outro lado meu pergunta: não seria o caso de suprimir esses cartões em nome desta ética de austeridade?
Como cidadão eu não me importo que os governantes do meu país tenham apoio “oficial” quando desempenham seus papéis públicos. O que me deixa incomodado é descobrir que a Presidência da República não atina com as implicações do seu papel. Vai que o avião — valha-nos Deus! — cai! Num mundo monitorado, o segredo, como o perigo calculado ou a propensão ao risco, é inútil e perigoso. Lembra aquela piada de uma certa polícia secreta que era sempre descoberta porque vestia farda.
O Globo, 05/02/2014
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