“Alguns dizem que nós jamais saberemos que, para os deuses, somos como moscas que os meninos matam num dia de verão; e outros dizem, ao contrário, que nem um simples pardal perde uma pena que não tenha sido arrancada pelo dedo de Deus.”
Thornton Wilder Entramos confusos em 2010. A revelação dos pacotes de dinheiro saqueado dos cofres públicos no mensalão do DEM confundem-se com a busca de corpos dos deslizamentos que parecem ocorrer em toda parte. As imagens do cinismo político são hóspedes não convidados, mas é fácil adivinhar suas intenções. Pior que isso é procurar as pessoas amadas levadas por um desastre natural mudo diante da questão: “Por que minha casa e família?” Resistimos a tudo, menos ao caos. A ordem não foi feita por reacionários que amam proibir e limitar, mas porque somos um bicho sem pacote comportamental. Um escorpião envenena o sapo que o transporta salvando-o numa inundação porque, como ele mesmo reconhece, ferroar é parte da sua natureza. Nós, humanos, damos nossas vidas pelos outros; ou nos suicidamos pelo senso de fracasso ou de honra. Dizem que ficamos a meio caminho entre os animais que vivem para procriar e, como alguns políticos nacionais, não têm o menor senso de culpa ou responsabilidade, e os anjos que, sendo seres espirituais puros, têm uma agudíssima consciência da moralidade individual e coletiva. Podem ser tentados pelo narcisismo, como foi o caso de Lúcifer, mas não se reproduzem porque, como todos sabem, não têm costas ou sexo. Comparando homens, anjos e animais, ouvi de um velho professor, o Todo-Poderoso ficou um tanto arrependido, se é possível conceber tal tipo de sentimento em quem, como certos intelectuais que conheço, é dotado de onipotência, onisciência e onipresença. * * * * O fato é que nós não suportamos o extraordinário negativo e não programado. O infortúnio que fere, destrói e mata e que, ao contrário da guerra, não foi planejado pela causa ou pátria. Sobretudo quando ele chega de supetão como nas catástrofes. Remarquei uma vez, num pomposo ensaio acadêmico, que as grandes festividades eram como catástrofes, pois igualmente suspendiam ou subvertiam – como está acontecendo no Haiti e ocorre no carnaval; e como aconteceu em Lisboa, ceifando mais de 90.000 almas, em 1755! – as rotinas do pão e da água, a cota de trabalho, revolta e sofrimento esperados e merecidos. Mas com uma diferença capital entre eles. É que os ritos são programados e fazem o nosso destino de dentro para fora; ao passo que os acidentes naturais chegam sem aviso ou cerimônia, de fora para dentro, como manda o figurino do imprevisto. Trata-se da velha diferença entre a morte-morrida: esperada e muitas vezes libertadora; e a morte-matada, que leva as almas de modo brusco e sem aviso. O mistério se instala quando esses eventos se confundem, como foi o caso da Ilha Grande, quando o deslizamento ocorreu na virada do ano. Ou na viagem inaugural de um supernavio, como o Titanic. * * * * Agora, estamos lidando com a fúria desapaixonada do terremoto no Haiti. E, no entanto, não é possível conceber a existência humana sem esses eventos capazes de desmanchar e desconstruir, que nos fazem abandonar as paixões da vida com seus programas e controles, para fitar outro mundo. O lado mais obscuro e não previsto das coisas. Não há quem não tenha perdido um ente querido subitamente, sem que se instale na sua existência a velha e formidável questão que vai além do hamletiano ser ou não ser. Pois o que está em foco na catástrofe é o problema da intencionalidade. Será que aquilo tudo foi feito só para me atingir? O que fiz para merecer tanto sofrimento? Há ali alguma mensagem que eu não consigo decifrar? No caso de um terremoto, então, a subversão é total. Nele, não é apenas um pedaço da montanha ou do mar que desmorona ou agride, nem uma chuva ou neve que caiu torrencialmente. Não! É o próprio chão que nos reafirma e firma, a própria Mãe-Terra que nos sustenta e agasalha que mata e destrói. Deus do Céu: o que devemos ter feito para merecer essa experiência de ver o chão aberto diante de nossos pés, para assistir ao desmoronamento de nossas igrejas, palácios, monumentos e casas feitas para durar eternamente? Como permanecer desapaixonado diante de perdas que remetem às paixões estranhas e tremendas das eternas despedidas? * * * * A oração, a reza, a prece, é um modo de lidar com tudo isso. Parece pouco, mas quem somos nós para pretender soluções definitivas? A humilde fórmula verbal que invoca os poderes supremos do universo, e abre uma ponte deste com o outro mundo, permite encaminhar os que foram arrancados de nosso convívio. Ademais, rezar é reintegrar-se humildemente no todo que o aqui e agora das tarefas do dia a dia levam a esquecer. Num sentido profundo, rezar é também reafirmar a nossa ligação com os que perdemos. Eles se foram, sussurramos para a morte que nos espera, mas nós fazemos com que vivam novamente pela aceitação do sofrimento contido na ferida transformada em cicatriz que chamamos de saudade. Esse é o modo humano de honrar a nossa finitude e de assim triunfar sobre o barro inefável do transitório do qual somos feitos.
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