Decidi estudar Economia ainda no início da adolescência. Tinha pouco mais de 13 anos quando fiz minha opção de formação, motivada por um desejo de trabalhar em banco e me realizar no mundo financeiro. Havia, já ali, o gosto pelo desafio de buscar uma carreira num universo masculino, parte explicada pela grande afinidade de pensamento com meu pai e, em outra, pelo grande orgulho da minha mãe, que sempre quebrou as barreiras de gênero. E assim foi.
Dez anos depois de feita a escolha, concluí a graduação na Universidade de Brasília com um trabalho sobre o tamanho “ótimo” do Estado e também os créditos do mestrado pela Fundação Getúlio Vargas no Rio, iniciando minha carreira no banco da família.
A economia me deu o ferramental analítico para lidar com os modelos de risco e, certamente, também uma boa dose de curiosidade e de intuição. O estudo do funcionamento do mercado de crédito veio com o interesse por entender os motores de desenvolvimento econômico e de geração de bem-estar social. A formação como economista nos lega esse cacoete de tentar olhar o todo, de avaliar o contexto e de buscar um resultado melhor para todos.
Mas só muitos anos mais tarde de realizado o sonho de trabalhar no mercado financeiro, quando retornei às salas de aula da USP e da FGV para buscar um doutorado, é que entendi completamente o sentido de estudar Economia.
Era início dos anos 2000. A redemocratização se consolidara e o Plano Real nos devolvera o poder de compra da moeda. A agenda econômica, antes completamente dominada pelo combate à inflação, agora deixava espaço para outros temas. O aprofundamento do mercado de crédito era um deles. E eu me encontrava ali, discutindo as reformas necessárias para o desenvolvimento do crédito bancário e perseguindo com dedicação um doutorado que me transformou numa microeconomista bancária. Mas foi uma apresentação do economista Ricardo Paes de Barros (PB), numa sala de aula lotada na FGV em Botafogo, que me despertou para a necessidade de olhar muito além dos modelos de crédito. O tema da aula? Desigualdade de renda no Brasil.
Perseverei na trajetória desenhada na adolescência, voltei ao mercado financeiro e de alguma forma cá estou ainda, mais de 20 anos depois. Mas o olhar econômico mudou, incorporando desde então uma visão social que mesmo nos debates de crédito, nas discussões sobre o desenvolvimento do mercado de capitais e, mais recentemente, na defesa da reforma administrativa do Estado e da melhor alocação dos gastos públicos, revela uma motivação que é sempre, e fundamentalmente, a de romper com o nosso passado concentrador de renda e de buscar, via ações de políticas públicas, ressaltar a necessidade de combater a desigualdade social no Brasil como única forma de avanço econômico possível.
Mais de Ana Carla Abrão
Desigualdade
Negacionismo
(Des)construção
Os vínculos entre objetivos e instrumentos são claros e nada têm a ver com “anticapitalismo”.
Desigualdade é dessemelhança, é diferença. Pode, como tal, ser positiva – ou não necessariamente ruim. Sendo o resultado de esforços distintos, de competências mais ou menos adequadas ou mesmo da sorte ou do azar é esperado (e até desejável) que esteja presente num ambiente competitivo e – no sentido econômico – equilibrado.
Equilibrado aqui significa dizer que o ponto de partida para os diversos indivíduos precisa ser minimamente comparável, ou seja, há oportunidades que permitam a todos, ou ao menos à maioria, que se desenvolvam e atinjam resultados distintos daqueles que sua condição primária determine, refletindo esforços e competências, muito mais do que o ponto de partida. Claro que existem nuances, afinal a realidade é muito mais complexa e igualdade de oportunidades parece um conceito utópico. Mas não há como negar que no Brasil não está na nuance, pois há muito não gera oportunidade alguma para a grande maioria.
Não chegamos aqui por acaso. Foram décadas de construção de um Estado que se especializou em manter privilégios para alguns em detrimento da geração de oportunidades para todos. Isso se reflete na captura dos orçamentos públicos, até mesmo nas linhas nobres de educação e saúde. A lista é longa e vai desde isenções e desonerações fiscais sem avaliação e ao contínuo atendimento das demandas corporativistas, passa pela obsolescência de políticas sociais antiquadas e desfocalizadas e por um sistema tributário injusto, e chega à perpetuação de empresas públicas que se prestam apenas a interesses eleitoreiros, quando não corruptos. Ou seja, temos uma máquina muito eficiente em criar desigualdades, que reforça as oportunidades no topo da pirâmide e as elimina na base.
Embora uma rasa polêmica terminológica tenda a desviar o debate para uma equivocada contradição entre capitalismo e desigualdade de renda, o que vale é o que já está consagrado: o atual nível de desigualdade social no Brasil é, para além das incontornáveis questões morais e éticas, incompatível com um país que precisa crescer, gerar emprego e renda e melhorar as condições de vida da população mais pobre.
As condições de partida importam e enquanto as políticas públicas não tiverem como objetivo precípuo o combate à desigualdade social, estaremos aprofundando ainda mais o fosso entre ricos e pobres. A consequência não será outra senão piorar o que já é ruim, ou seja, ampliar ainda mais a desigualdade e condenar o Brasil ao fracasso.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 21/7/2020