Segundo as projeções de mercado da pesquisa Focus, a inflação deve ficar em 7,6% neste ano e em 4% no ano que vem. É uma baita desinflação para nosso padrão histórico.
Desde o início do regime de metas de inflação, em 1999, o Brasil observou uma única vez —entre 2015 e 2016— um recuo do IPCA superior ao valor implícito nas projeções atuais. Naquele período, a inflação caiu de 10,7% para 6,3%, no embalo de uma prolongada recessão, da elevação substancial dos juros reais e de uma vasta apreciação do câmbio em resposta à volta do tripé macroeconômico.
Mais de Solange Srour
Riscos à recuperação
“Se o Teto de Gastos for desrespeitado, a dívida brasileira entrará numa trajetória insustentável”, afirma Solange Srour
Hoje, as hipóteses do Focus para o comportamento da Selic, do câmbio e do PIB passam longe do ocorrido naquele período. Ou seja, o mercado acredita que a inflação é temporária, que sua persistência é baixa e/ou que a política monetária é muito mais eficaz hoje do que era no passado.
No entanto, há um risco nada desprezível de o quadro inflacionário ser muito mais grave, ter difícil controle e trazer consequências bastante negativas para a renda dos brasileiros nos próximos meses. Há 14 meses, o mercado vem subestimando a inflação. Dentre os últimos 11 erros, 8 foram superiores a 0,4 ponto percentual no mês. É verdade que a pandemia torna mais complexa a arte de projetar inflação; mas, no caso brasileiro, há uma peculiaridade que parece enviesar as projeções de inflação.
Quando a Covid-19 atingiu o nosso país, a inflação acumulada estava em 3,3% (últimos 12 meses até março de 2020), enquanto as expectativas para o fim do ano estavam em 3,3%, abaixo da meta de 4,0%. Naquele momento, ganhou força a ideia de que o Brasil finalmente havia quebrado a inércia inflacionária, ou seja, a inflação passada pouco afetaria a inflação corrente. Afinal, a inflação de serviços (sempre o grupo mais inercial) finalmente tinha saído do patamar histórico de 7,2% e alcançado 3,1%.
Tal concepção foi corroborada pelo BC, que derrubou a taxa Selic de 4,25% ao ano para 2% ao ano entre março e agosto, apoiado pelo mercado, cujas expectativas apontavam para inflação de 1,6% e 3,0% em 2020 e 2021, respectivamente.
Infelizmente, mais de um ano de surpresas inflacionárias extremamente altas deveria ser suficiente para colocar em xeque a tese de baixa inércia. É incrível que isso não esteja acontecendo com o consenso esperando uma desaceleração expressiva da inflação em 2022, ainda mais quando a discussão dos precatórios e a obsessão por aumentar gastos no ano eleitoral trazem dúvidas sobre a sustentabilidade da nossa dívida. Historicamente, momentos de fragilidade fiscal aumentam a persistência da inflação.
Um estudo que eu fiz com o Lucas Vilela para o Credit Suisse mostra que, historicamente, as expectativas de mercado para o ano à frente demoram a reagir às surpresas inflacionárias e calcula que esta última atingiu 5% nos últimos 12 meses (o mais alto valor desde 2004, ano em que teve início a série histórica para expectativas).
Para um país cuja meta é 3,25% em 2022 com uma tolerância de 1,5 ponto percentual, tal valor é bem significativo. Alheias à realidade, as expectativas para os próximos 12 e 24 meses continuam contidas, como pode ser visto no gráfico.
As evidências indicam que o montante de inflação transferido de um período para outro é cíclico: quando a inflação acelera, a persistência aumenta; quando a inflação desacelera, a inércia recua. Outro estudo realizado por nós descreve esse fenômeno e compara o Brasil com os demais emergentes. Temos o segundo maior coeficiente de inércia, inferior apenas ao da Índia.
A maior desinflação após o Plano Real resultou de juros reais restritivos (estimados em 7,4% em 2016, 4,3% em 2017 e 3,2% em 2018), da manutenção de uma elevada ociosidade da economia (desemprego médio de 11,3%, 12,8% e 12,3% em 2016, 2017 e 2018, respectivamente) e da retomada da credibilidade fiscal (no fim de 2016 foi aprovado o teto de gastos). Aliás, juros reais elevados estiveram presentes nas desinflações de 2001/2002 e de 2004/2005. Não há mágicas para conter a inflação.
Para muitos, a gravidade do processo inflacionário não é gritante, mas o rendimento médio do trabalho atual já está 2,7% inferior ao de nove anos atrás. Dado que as expectativas de mercado são elementos primordiais no processo decisório do BC, a crença de que a inflação será controlada sem que os devidos custos sejam incorridos e sem que a âncora fiscal seja fortalecida empobrecerá ainda mais os brasileiros em 2022.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 08/09/2021
Foto: Reprodução/Folha S Paulo