A notícia não poderia ser mais surpreendente: o governo federal decidiu fechar a Farmácia Popular e alocar 100% dos recursos diretamente à compra de remédios. O que surpreende: a decisão foi baseada em uma análise de custo/benefício — a burocracia consumia 72% do dinheiro. E se esses mesmos critérios fossem aplicados à chamada “área social” e, especialmente, à educação?
Comecemos por um caso que chama a atenção pelo seu caráter pervasivo e sua resiliência: a reprovação escolar. Aqui cabe uma análise de custo/malefício.
De acordo com recente relatório do Inep/MEC, cerca de 10%, ou seja, quase 3 milhões de alunos do ensino fundamental e médio são reprovados a cada ano — essa tendência não tem mudado significativamente. É como se cada aluno fosse reprovado pelo menos uma vez na vida escolar. Dado que 72% dos alunos nunca são reprovados, isso significa que um grupo de alunos acumula reprovações em massa. Em termos de custo financeiro, isso representa um desperdício anual superior a R$ 9 bilhões, equivalente a 6% do orçamento desses dois níveis de ensino.
A prática da repetência em massa se dá em todos os níveis de ensino, com ligeiras nuanças. Nas duas séries iniciais, ela é baixa, mas há unidades federadas com 10 e 19% de reprovação nesses dois primeiros anos. No terceiro ano, há picos que chegam a 25,5%. A esmagadora maioria das Unidades Federadas reprova mais de 15% dos alunos no 3º ano, supostamente por que ainda não aprenderam a ler. Apesar desse índice elevado, as taxas de reprovação continuam superiores a 10% no quarto e quinto anos da maioria das UFs. Outro pico ocorre no 6º ano, com taxa média de 20%. Em Sergipe — o campeão nacional de reprovação em todas as séries — chega a 33,5%. Nas demais séries finais, em todo o país, os níveis de repetência são mais elevados do que nas séries iniciais. No 1º ano do ensino médio ocorre outro extermínio em massa — nenhuma UF reprova menos de 10% dos alunos (a maioria reprova entre 18 e 25%). Apenas no 3º ano o ânimo reprovador arrefece um pouco — mas ainda permanece acima de 10% em pelo menos quatro unidades da Federação. Ceará, Minas Gerais e São Paulo são os únicos três estados nos quais as taxas de reprovação são relativamente baixas em todos os níveis de ensino.
Resta perguntar: reprovação melhora o desempenho? As evidências disponíveis sugerem que não. Por exemplo, na Prova Brasil de 2013, os alunos reprovados pelo menos uma vez tiveram 20 pontos a menos na nota, uma diferença muito importante. Em apenas um de três outros estudos empíricos rigorosos, os resultados são ligeiramente favoráveis a alunos que repetiram o segundo ano — e isso na década de 80 e em circunstâncias muito especiais.
Por outro lado, se os critérios de reprovação fossem rigorosos e baseados nas notas da Prova Brasil, pelo menos metade dos alunos das séries iniciais, mais de 80% dos alunos das séries finais e a grande maioria dos alunos do ensino médio das escolas públicas deveriam ser reprovados.
A razão pela qual os professores decidem reprovar alguns alunos — e não outros — é mistério a ser investigado, mas certamente o desempenho acadêmico não parece ser o único ou maior fator.
Em resumo, é elevado o custo/malefício da política de reprovação em massa, e essa política pune tanto a economia do país quanto, sobretudo, os alunos reprovados — dados os conhecidos efeitos negativos da reprovação sobre a autoestima e a forte correlação entre reprovação múltipla e evasão escolar. Trata-se, portanto, de um caso evidente de imperícia profissional ou “malpractice”. Como se trata de uma prática disseminada, parece que a responsabilidade recai mais sobre os sistemas de ensino do que sobre os professores.
Os desperdícios com a reprovação não constituem exceção — não haveria espaço neste jornal sequer para listá-los. Interessa compreender o que está por trás do descaso com o desperdício: grupos que se intitulam monopolistas da defesa dos interesses da educação venderam à sociedade a ideia de que educação se resolve com mais recursos. O mais grave: a ideia foi comprada por todos. Somos “todos por mais recursos”.
O recente episódio dos passaportes é ilustrativo de como os políticos assimilaram essa cláusula pétrea. A proposta da área econômica era para cortar um conjunto de projetos do MEC que não geram qualquer impacto — no entanto, a ideia foi rejeitada a priori pelos congressistas. A mesma atitude se observa no Executivo — mesmo a atual gestão do MEC, cujos principais líderes vinculam-se a partidos políticos comprometidos com gestão fiscal prudente, mostra que assumiu essa bandeira. A rendição mais recente deu-se com a reedição do sabidamente ineficiente Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa. Cabe lembrar que, quando exercia o mandato de deputado, o atual ministro apresentou projeto de lei para assegurar a alfabetização aos seis anos de idade — idade em que os filhos e netos de meus leitores são alfabetizados.
Mas não são apenas políticos e governantes que engrossam o “todos por mais recursos”. Importantes empresários e lideranças empresariais emprestaram e continuam emprestando seu apoio incondicional a medidas que sabidamente comprometem a saúde financeira de estados e municípios – como é o caso do PNE — o Plano Nacional de Educação.
A história da Farmácia Popular indica que há vida inteligente em setores do Executivo. Oxalá os empresários que se interessam pela educação — em vez de engrossar o coro do “todos por mais recursos” — examinassem as questões da área com os mesmos instrumentos e critérios que usam para tomar decisões que afetam o futuro de suas empresas. Isso poderá ajudar a criar um ambiente para cobrar um discurso consistente dos próximos candidatos a presidente do Brasil. E, no futuro, depois de cortadas as ineficiências, justificar o necessário aumento de recursos para a área. Mais recursos, antes disso, é jogar dinheiro fora.
Fonte: “Valor econômico”, 28/07/2017.
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