Levantamento do jornal “Zero Hora” mostra que as investigações sobre as causas do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, devem ser permeadas por nove pontos. Questões básicas, como se a boate deveria ou não ter saída de emergência, permanecem sem explicação, apesar de estarem claramente previstas em lei. Divergências e informações desencontradas, no entanto, mostram que a missão de apontar as causas da tragédia e de identificar culpados não será simples. O trabalho científico do Departamento de Criminalística revelará as causas físicas do incêndio. Restará aos demais personagens desta investigação indicar quem falhou nos processos que poderiam ter evitado a tragédia. Veja os pontos que serão investigados pela Polícia Civil e o Corpo de Bombeiros:
1 – Sinalizadores
Sobreviventes relatam que as chamas teriam começado após uso de sinalizadores durante a apresentação da banda Gurizada Fandangueira. Os relatos divergem, no entanto, quanto à origem das chamas: se seriam provenientes de um sinalizador de mão segurado por um integrante do grupo ou do lançador de pequenas faíscas a partir de plataformas fixadas no chão, conhecido como sputnik.
O que deve ser investigado:
O laudo do Departamento Criminalística deve apontar qual a origem do fogo e subsidiar a investigação. Proibido por lei, o uso de recursos pirotécnicos dentro de casas noturnas será investigado pela Polícia Civil.
O que diz a legislação:
Conforme o tenente do Corpo de Bombeiros de Porto Alegre Miguel Augusto Ribeiro, efeitos pirotécnicos não podem ser empregados em ambientes fechados.
2 – Plano de prevenção vencido
A boate Kiss está com o Plano de Prevenção e Controle de Incêndios vencido desde agosto de 2012. A informação é do subcomandante-geral da Brigada Militar, coronel Altair Cunha, que é bombeiro e viajou para Santa Maria.
— É normal que se permita o funcionamento enquanto um novo plano de prevenção é verificado, já que eles tinham um plano anterior aprovado — explica Altair.
O comandante do Corpo de Bombeiros, coronel Guido Pedroso de Melo, também confirma que plano de prevenção estava vencido. Os bombeiros já tinham notificado a boate para a renovação.
O que deve ser investigado:
Será apurado se os trâmites da renovação do plano de prevenção estavam dentro do prazo normal e se a casa tinha mesmo os requisitos mínimos de segurança para seguir funcionando.
O que diz a legislação:
Os estabelecimentos têm de estar com o Plano de Prevenção e Controle de Incêndios (PPCI) em dia. A hipótese de o estabelecimento funcionar enquanto a renovação do PPCI tramita depende de análise preliminar dos bombeiros. Se houver uma situação de risco iminente, pode ser pedida a interdição do local.
3 – Saídas de emergência
Relatos de testemunhas indicam que havia apenas uma possibilidade de saída, ou seja, a porta principal, e que ela teria sofrido obstrução dos seguranças da casa.
O que deve ser investigado:
Conforme o comandante do Corpo de Bombeiros, coronel Guido Pedroso de Melo, as dimensões da porta de acesso principal permitiam o funcionamento da casa sem saídas de emergência. A polícia deve apurar se a informação procede e cotejar o cenário do incêndio com as normas estabelecidas pela legislação.
O que diz a legislação:
Há divergência entre o que diz o comandante Guido e o que estabelece a legislação. A norma da ABNT, que serve de parâmetro para a lei estadual, diz que locais de reunião de público, como boates e clubes noturnos, devem ter duas saídas. Mesmo que se considerasse a única porta existente no local — por onde sobreviventes se esmagavam em busca de ar — como uma saída de emergência, ainda deveria haver outra.
4 – Lotação
O número de pessoas na festa ainda é impreciso. Há relatos de que havia mais de mil. O subcomandante-geral da Brigada Militar, coronel Altair Cunha, chega a falar em cerca de 1,5 mil jovens na boate.
O que deve ser investigado:
Além de apurar o número aproximado de pessoas dentro da casa, a Polícia Civil deve solicitar ao Corpo de Bombeiros cópia do alvará onde está previsto a ocupação máxima de pessoas dentro da Kiss.
O que diz a legislação:
Conforme o coronel Guido Pedroso de Melo, comandante do Corpo de Bombeiros, para obtenção do alvará dos bombeiros, a casa havia informado que a capacidade era de mil pessoas.
5 – Luzes de emergência
Dezenas de relatos de testemunhas indicam que o local ficou às escuras logo que o fogo começou, o que dificultou o socorro.
O que deve ser investigado:
A investigação terá de verificar que tipo de iluminação de emergência havia no local, a quantidade e se estavam distribuídas conforme a legislação determina. O comandante dos Bombeiros no Estado, coronel Guido Pedroso de Melo, informou ontem que vistorias constataram a existência de luzes de emergência.
O que diz a legislação:
A legislação determina que a iluminação de emergência seja abastecida por fonte própria — portanto, diferente da fonte que abastece o local atingido pelo fogo. Cada lâmpada tem de ter capacidade de funcionamento de uma hora.
6 – Equipes de incêndio
Conforme relatos de um dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, que se apresentava no momento em que o incêndio se iniciou, funcionários entraram em desespero e não conseguiram auxiliar no combate ao fogo.
O que deve ser investigado:
Se funcionários da casa noturna passaram por treinamento específico de brigada de incêndio.
O que diz a legislação:
Conforme a lei, um estabelecimento como a Kiss teria de ter pelo menos quatro pessoas treinadas e habilitadas a lidar com os extintores. A lei define, inclusive, a carga horária de treinamento.
7 – Basculantes lacradas
Sem saída de emergência, muitas vítimas tentaram fugir pelas janelas dos banheiros, mas encontraram as basculantes bloqueadas por tábuas. Conforme o presidente regional do Instituto Brasileiro de Avaliações e Perícias de Engenharia (Ibape), Marcelo Suarez Saldanha, as vítimas tentaram sair pelas janelas dos dois banheiros:
— Elas foram se empilhando no local. Quebraram os vidros, mas não conseguiram passar pela madeira, que integrava a fachada da casa noturna.
Na visão do engenheiro civil, que produzirá um laudo técnico a ser encaminhado ao Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura e à Polícia Civil, as janelas, com medidas aproximadas de 50 centímetros por 50 centímetros, poderiam ter auxiliado na fuga das vítimas.
O que deve ser investigado:
A Polícia Civil investigará porque as pessoas fizeram das janelas uma alternativa para sair do local. Uma das hipóteses é de que problemas na sinalização tenham levado as vítimas a crer que as portas dos banheiros seriam, na verdade, portas para fora do prédio.
O que diz a legislação:
Não há especificação legal sobre a necessidade de as janelas servirem como opção de saída do local. Especialistas, no entanto, alertam que as basculantes se tornariam uma alternativa de fuga na ausência da saída de emergência, obrigatória por lei.
8 – Revestimento utilizado
Conforme relatos, o fogo se alastrou pelo teto a partir do revestimento acústico usado na casa noturna. O presidente regional do Instituto Brasileiro de Avaliações e Perícias de Engenharia (Ibape), Marcelo Suarez Saldanha, que esteve no local, diz que a espuma usada para abafar os ruídos era “inadequada”:
— Era uma espuma branca sensível às chamas. Isso fez com que o fogo se alastrasse.
O que deve ser investigado:
A Polícia Civil investiga se foi empregado na casa noturna um material inadequado.
O que diz a legislação:
O local deveria ser revestido acusticamente com o uso de uma espuma especial, que não propaga as chamas e, ao ser aquecida, derrete rapidamente.
9 – Ação dos seguranças
Relatos de testemunhas indicam que seguranças da casa, num primeiro momento, teriam barrado a saída de clientes, supostamente exigindo o pagamento das comandas. O bloqueio teria sido vencido pela multidão desesperada.
O que deve ser investigado:
Com base em depoimentos de sobreviventes, a polícia deve apurar, além da eventual responsabilidade dos funcionários, se estes haviam recebido orientação prévia da direção da casa para barrar clientes em caso de tumultos.
O que diz a legislação:
Os seguranças deveriam auxiliar a saída dos clientes.
Fonte: O Globo
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