*Por Pedro Cavalcanti e Renato Fragelli
Em declarações recentes, o ministro da Fazenda tem defendido a supressão das vinculações de receitas a despesas específicas, instituída pela Constituição de 1988. O tema recebe apoio de governadores e prefeitos acossados por uma profunda crise orçamentária. O argumento apresentado baseia-se em objetivos em princípio defensáveis, mas uma análise menos apaixonada identifica problemas que tendem a ser criados por uma desvinculação açodada.
Há quem defenda o extremo oposto, manter a situação atual, pois do contrário políticos locais poderiam usar verbas sociais com objetivos eleitorais ou clientelistas, com consequências muito ruins para a educação e mesmo para a saúde. Entretanto, há formas de se buscar uma flexibilização do esquema atual, excessivamente engessado, sem, contudo, abrir caminho para ações oportunistas de curto prazo.
O primeiro argumento a favor é o da eficiência econômica. As vinculações de receitas a rubricas específicas – educação e saúde, por exemplo – refletem prioridades do passado que não necessariamente permanecem prioridade no presente. Quando a Constituição foi aprovada, a taxa de natalidade era o dobro da atual. Consequentemente, naquela época a população era predominantemente formada por crianças, o que levou os constituintes a forçar os governantes de turno a não sacrificarem o investimento em educação em prol de outras rubricas. Passadas três décadas e meia, a redução da taxa de natalidade somou-se à diminuição da taxa de mortalidade. O resultado é uma fração decrescente de crianças acompanhada de uma fração crescente de idosos na população, implicando menor necessidade de gastos com professores e maior com médicos.
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O argumento da eficiência econômica tem outros aspectos. Como os gastos com educação são predominantemente ligados à remuneração de professores indemissíveis, em momentos de forte aumento da arrecadação – como na segunda metade da década de 2000 – o administrador público é obrigado a contratar mais profissionais de ensino. Quando ocorre queda de arrecadação – como na crise iniciada em 2015 -, é impossível reduzir o gasto à nova base de arrecadação menor. O resultado é a escassez de recursos em outras rubricas.
Uma segunda linha de argumentação é política. Numa democracia, a tarefa precípua de vereadores e deputados estaduais é deliberar sobre o orçamento. Cabe a esses eleitos pelo povo decidir quanto tributar e onde gastar os recursos. A guerra de independência americana foi desencadeada pelo movimento de “no taxation without representation”, isto é, não se deveria aprovar tributos (e gastos) sem que estes passassem antes pelo crivo dos representantes eleitos democraticamente. As vinculações transformam os deputados ou vereadores atuais em meros carimbadores de decisões tomadas há três décadas atrás.
Ocorre que num país com péssima distribuição de renda, onde a educação já foi identificada como a mais eficiente política de redução de desigualdades, delegar a decisão de quanto gastar em educação a vereadores com visão predominantemente de curto prazo, muitos vítimas eles próprios da má qualidade da educação, é uma medida temerária. Como as crianças não votam, é provável que a educação seja sacrificada por legisladores locais em busca de reeleição. O problema é menor no caso da saúde, pois as filas nos postos de atendimento e hospitais tendem a funcionar como mobilizador dos eleitores.
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Uma linha intermediária entre o extremo da rígida vinculação atual e o outro extremo, da desvinculação total, é possível. O Brasil já dispõe de bons indicadores da qualidade da educação, como o Ideb para a educação básica ao encargo de municípios, e o Enem para o Ensino Médio sob responsabilidade dos Estados. É possível implantar uma desvinculação responsável definindo-se em lei federal critérios para a flexibilização das vinculações atuais. Por exemplo, municípios que superassem uma nota de referência no Ideb poderiam reduzir a fração da receita destinada à educação básica. Analogamente, Estados que superassem a nota fixada para o Enem (de alunos oriundos de escolas públicas) estariam livres para diminuir a parcela alocada ao Ensino Médio. Nada impediria que as notas de referência citadas sofressem elevação ao longo do tempo.
Uma solução alternativa, e de implementação mais fácil, é vincular os gastos não à receita, mas ao número de alunos em cada município ou Estado. As regras de distribuição de receitas do Fundeb e Fundef já levaram em conta esse critério e os dados do Censo Escolar estão disponíveis para isto. Desta forma, a redução do número de alunos implicaria redução dos gastos em educação, abrindo espaço fiscal para se gastar em itens mais prementes ou que espelhem melhor as necessidades locais. O percentual das receitas vinculado poderia variar com a série escolar, e existem inúmeras questões técnicas a se decidir, mas o importante é que os gastos educacionais flutuariam com o número total de estudantes.
A democracia e a eficiência são objetivos compatíveis. Os extremos aqui são muito ruins e perigosos socialmente. Entretanto, há como se definir boas regras que estimulem os legisladores a investir nas nossas crianças.
Fonte: “Valor Econômico”, 21/03/2019