A nossa democracia é laica, mas nossas decisões políticas são tomadas sob a premissa de que Deus é —e sempre será— brasileiro. Queremos benefícios sem custos (e quem em sã consciência não quereria?).
Exigimos que seja assim. Os custos hão de ser empurrados para algum momento indeterminado do futuro e cair sobre as costas de alguma entidade benévola não especificada, sem machucar ninguém. Algum dia alguém dá algum jeito e fica tudo certo. Deus resolve.
A maioria dos brasileiros concorda com o controle de preço do diesel, e quer ainda o controle de preço da gasolina e do gás natural. Só não aceita ter que pagar a conta. A Petrobras que tenha um prejuízo. E quem vai cobri-lo? O Tesouro, essa entidade superior e fonte de riquezas, que não por acaso também recebe letras maiúsculas.
Não é um caso isolado. Da direita à esquerda, todos pedem por mais gasto para suas causas e setores de preferência, sem nunca especificar quem vai ficar com a conta; essa fica para uma figura oculta, alguém com um bolso vasto e generoso. Há quem diga, inclusive, que o aumento de gastos vai aumentar a arrecadação; multiplicação milagrosa dos pães.
Os liberais sabem muito bem que tudo isso se traduz em mais impostos. E por isso a principal bandeira liberal no Brasil, o corte de impostos, ressoa cada vez mais.
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Só que um corte de impostos também precisa ser pago, na forma de corte de gastos; e quem vai sofrer esse corte? Isso a gente vê depois, o Estado dá “um jeito” de se tornar mais eficiente. Há quem diga, inclusive, que o corte de impostos vai aumentar a arrecadação; multiplicação milagrosa dos peixes.
Até mesmo nosso controle fiscal opera na lógica do milagre. A Presidência e o Congresso suaram para passar a PEC do Teto em 2016, que impôs limites severos ao gasto público. No agregado. E sobre que área específica cairá o ajuste? Em ninguém; fica nas mãos do alguém difuso que vive num futuro abstrato. É promessa que vale para todos coletivamente e para ninguém em particular.
Essa é a lógica que governa o Brasil desde 1500, consagrada na Constituição de 1988, tão pródiga em direitos para todo mundo. O direito é a manifestação do “fiat” divino entre os homens: uma obrigação incondicional que a realidade —alguém— terá de dar algum jeito de cumprir.
O problema é que acabou o “milagre econômico” —um crescimento acelerado e sem causas conhecidas, que ocorre apesar de todas as deficiências e entraves, esses sim muito bem conhecidos. O Deus parece ter conseguido o green card e nos abandonou.
Na falta de um novo milagre, o juízo final se aproxima. O Estado brasileiro tem mais de 90% de seus gastos engessados. Pelas leis vigentes, não tem espaço para cortar. A população deixou claro que não tolera mais impostos, o que ademais iria sufocar a economia. E seria talvez até mais desastroso acabar com a estabilidade monetária e cobrir o rombo fiscal com a volta da inflação.
O que fazer? Uma alternativa é seguir confiando na intervenção divina até o fim, deixando que o ajuste a deus-dará. A corda estoura para o lado mais fraco e voltamos ao caos primordial. A outra é ser impiedoso e olhar para a realidade com olhos de ateu.
Para que alguns continuem ganhando, pessoas de carne e osso terão que pagar. E aí sim poderemos responder à pergunta que o Brasil é mestre em evitar: quem? O funcionário público ou o desempregado? O estudante ou o aposentado? O pobre ou o rico?
O problema é que para as escamas caírem de nossos olhos também será necessário um milagre…
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 12/06/2018