Fala-se muito e há muito tempo do saneamento, dos seus entraves e das suas soluções, mas poucos resultados aparecem. Tem algo errado, sem dúvida. O erro começa pelo desconhecimento dos problemas e, consequentemente, a aplicação de soluções inadequadas.
O principal problema é a falta de vontade política. Estamos falando de serviço público, que depende de vontade política. Há um desconhecimento muito grande dos nossos gestores públicos e dos nossos políticos sobre o que é realmente o saneamento. O saneamento é muito diferente dos outros serviços de infraestrutura. Ele é muito mais social do que uma estrada, um aeroporto, porque ele afeta a vida. Por essa característica ele acaba sendo utilizado politicamente em detrimento dele mesmo.
Outro problema é a herança maldita do Planasa (Plano Nacional de Saneamento), instituído em 1969. Um grande plano que trouxe avanços nas décadas de 70 e 80, durante o período da ditatura militar. Hoje, em plena democracia, cerca de 70% do nosso saneamento básico ainda vive na ditadura militar, na qual as companhias de saneamento fazem o que querem, mandam nos governadores, nos prefeitos e em certos casos até no governo federal. Não reconhecem a legitimidade da titularidade municipal e não respeitam as diretrizes do novo marco regulatório de 2007. Não planejam, não querem ser regulados, não querem a regularização dos seus contratos, não buscam a sustentabilidade econômica e financeira com eficiência e não estão preocupados com a universalização dos serviços sob sua responsabilidade.
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Um terceiro problema é a falta de memória e aprendizado. Há 20 anos, o Governo Federal implementou um programa de renegociação de dívida com os estados, colocando a privatização da CESB como contrapartida para adesão a esse programa. Hoje, o mesmo programa foi retomado com os mesmos objetivos de renegociação de dívida entre estados e Governo Federal, com o uso do mesmo BNDES para modelizar essa privatização. Não somente não avaliaram os resultados de 20 anos atrás para relançar o programa como estão cometendo os mesmos erros que levaram ao fracasso anterior.
O quarto problema é a falácia da falta de recursos para investir em saneamento. O Brasil é um dos poucos países do mundo que há recursos para investir em saneamento. Esses recursos provem na sua maioria do FGTS e são exclusivos para saneamento e habitação. Todos os anos bilhões de reais são disponibilizados pelo FGTS ao saneamento, que usa menos da metade e o restante é sistematicamente realocado para o próximo ano.
Um quinto problema é a visão distorcida sobre tarifas e subsídios. A tarifa é o principal recurso que o saneamento possui para investir. Para isso, devem ser justas, adequadas e transparentes, e os serviços devem ser prestados com sustentabilidade econômica e financeira para viabilizar seus investimentos. Da mesma forma, os subsídios devem ser diretos e direcionados para quem os necessita. Porém, o nosso saneamento trabalha com tarifas demagógicas utilizadas para fazer política e sem sustentabilidade econômica e financeira.
O sexto problema é o desconhecimento, consciente ou não, das modelagens e dos resultados da participação do setor privado como prestador dos serviços. Dizem que a privatização gera desemprego, aumento de tarifa, lucro abusivo e corrupção. Dizem que as empresas privadas focam nas cidades maiores, mais ricas e com população com situação sócio-econômica mais elevada. Mas a realidade mostra que é o contrário: os operadores privados geram empregos ao investirem, substituem tarifas demagógicas por tarifas justas e adequadas, têm lucro regulado e eliminam a corrupção concentradas nas estatais.
O sétimo problema é uma visão distorcida do próprio setor privado sobre saneamento. Muitos grupos privados acham que saneamento é obra, até por uma demanda dos gestores públicos e dos políticos por obras eleitoreiras. Saneamento não é obra; é serviço com investimento. Saneamento é visão de longo prazo, obra é de curto. Quanto maior for o investimento e menor for a respectiva obra, mais eficiente será o serviço para a população.
O oitavo problema é achar que água e esgoto são as mesmas coisas que resíduos e águas pluviais, até porque o termo saneamento no Brasil refere-se a esses quatro serviços. Vimos empresas de resíduos entrando na atividade de água e esgoto. Acabam desenvolvendo soluções inadequadas e obtendo resultados decepcionantes.
O nono problema está ligado a um mercado financeiro que desconhece o setor de saneamento e vice-versa. O tempo e a rentabilidade do mercado financeiro não são condizentes com o tempo e o retorno da atividade de saneamento de longo prazo com rentabilidade regulada. As ferramentas financeiras, sejam de capital ou de dívidas, devem estar adequadas às necessidades do saneamento, assim como as empresas de saneamento devem construir modelos de negócios que sejam compreendidos e aceitos pelo mercado financeiro.
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O décimo problema é a confusão que se faz entre serviços públicos de água e esgoto e a gestão dos recursos hídricos. São temas interligados e complementares, mas são de governança e gestão regidas por leis diferentes. O primeiro, pela Lei de saneamento 11.445/ 2007, que define basicamente três pontos para os serviços públicos de água e esgoto: planejamento, regulação e regularização. O segundo, pela Lei 9433/1997, que promove os conceitos de usuários e poluidores pagadores a partir da criação de bacias hidrográficas e suas respectivas agências.
E, finalmente, não podemos esquecer da indiferença sobre os problemas de saneamento. A sociedade convive com a falta de saneamento de maneira passiva e acomodada com os constrangimentos a que é submetida no seu dia a dia, como o mal cheiro e a sujeira das cidades, as poluições dos rios, lagos e baías, as doenças e a mortalidade infantil, além do desrespeito dos seus direitos humanos e de cidadãos.
Temos de ter consciência dessa realidade e começarmos a exigir mudança de postura dos políticos, o respeito do marco regulatório por todas as empresas, sejam elas públicas ou privadas, o combate a falsos dogmas de que falta dinheiro, por exemplo, o fim do uso das tarifas demagógicas e uma eficiente governança e gestão das nossas águas.
Fonte: “Valor Econômico”