Corruptos têm, quando pegos, preferência por ser julgados pelo crime de caixa dois. Prescreve mais rápido, as penas são menores, e a Justiça Eleitoral, que os julga, tem a fama de ser mais benevolente.
“Caixa dois todo mundo faz”, é o bordão que se popularizou como uma espécie de unguento ético para as dores que eventualmente os acometem na frágil espinha vertebral. Quem há de esquecer a primeira entrevista do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, logo que veio à tona o Mensalão? Aquela mesma – “foi só caixa dois” –, estão lembrados?
Pois os corruptos do Brasil tiveram ontem uma notícia alvissareira, numa decisão da mais alta corte do Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF). Em casos complexos, não só o “apenas caixa dois” será encaminhado para julgamento na Justiça Eleitoral, mas tudo aquilo lhe for “conexo”: lavagem de dinheiro, evasão de divisas, corrupção e tudo o mais.
A decisão vinha sendo criticada pela força-tarefa da Operação Lava Jato e por integrantes do Ministério Público como um “golpe na Lava Jato”. É exagero. A esta altura, embora o julgamento abra uma dúvida jurídica, ninguém vai se meter a reabrir processos já julgados para que voltem à Justiça Eleitoral. Mas eles têm razão num ponto: a decisão representa uma mudança substancial na estrutura de incentivos à corrupção. Ficou mais fácil roubar e escapar ileso.
A Justiça Eleitoral tem uma fração do Orçamento que cabe à Federal (6%). Não tem nem 3 mil juízes espalhados pelo Brasil (ante mais de 18 mil), em geral magistrados emprestados de outras áreas, que desempenham seu dever eleitoral num sistema de revezamento.
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Não quer dizer que sejam necessariamente incapazes ou piores juízes. Ao contrário. Mas é evidente que não é possível, em tal esquema de trabalho, demonstrar a determinação e obstinação necessárias a grandes operações anticorrupção.
Também não quer dizer que a decisão do STF esteja necessariamente errada do ponto de vista jurídico. O Código Eleitoral determina o julgamento de todos os crimes ligados a caixa dois pela Justiça Eleitoral. Apenas que ela facilita a vida dos corruptos.
Seria injusto , é claro, olhar o STF como foco de incentivo à corrupção. Está em jogo uma disputa política com juízes e procuradores de instâncias inferiores, e o tribunal manifestou ontem ser uma instituição independente, infensa à pressão da opinião pública ou das redes sociais. Não é pouca coisa no momento político em que vivemos. O presidente Dias Toffoli tem razão em determinar investigações de ameaças aos ministros da Casa. É inadmissível o tipo de mensagem tem circulado.
Raros lembram que fazer leis é dever do Congresso Nacional. É interessante a ideia de uma CPI “Lava Toga”, para investigar acusações de “ativismo judicial” contra certos ministros. Mais interessante ainda seria o Congresso fazer seu trabalho e aprovar leis mais duras contra o caixa dois. O célebre pacote contra corrupção dorme nas gavetas parlamentares há dois anos. Nenhum político parece ter muito interesse em mexer no que depois pode se voltar contra ele próprio.
Outra questão a que o Congresso jamais respondeu a contento diz respeito à criação de um arcabouço legal que aperfeiçoe as relações entre empresas, partidos e o poder público. A corrupção e o capitalismo de compadrio só existem porque o empresário não confia que a lei lhe garante a preservação do próprio capital. Não adianta apenas punir, ou a erva daninha volta a crescer no mesmo local. Marcos regulatórios mais estáveis e confiáveis criariam um enorme desincentivo à atividade dos corruptos. Isso nem está na agenda dos congressistas.
O julgamento de ontem representa mais um passo na realização do que já era previsível dois anos atrás: o progressivo definhar da Lava Jato, nos mesmos moldes da Mãos Limpas italianas. O Congresso não aprovou por aqui nenhum “decreto salva-ladrões”, nem anistias escandalosas. Mas nem precisou. Senadores ficam posando de moralistas e atacando o Supremo, enquanto este entrega aos parlamentares a interpretação da lei mais generosa em benefício dos corruptos.
Fonte: “G1”