Me recordo de, ainda criança, perguntar à minha mãe o que era dialética. Na ocasião, como educadora e apaixonada pelo tema, ela discorreu longamente acerca da gênese e do significado da palavra, encerrando a explanação com frase precisa: “Sem dialética não há democracia, filho”. A partir dessa lição, aprendi que a plenitude democrática se resume a uma miragem, sem que haja um contexto viabilizador da desimpedida contraposição de ideias. Anos depois, já adolescente, ouvi o samba de Cartola, gravado por Monarco, no qual consta que “da discussão é que nasce a luz”.
Presentemente, a atuação sistemática e coordenada de amorais grupos oportunistas que agem em busca da concretização de seus inconfessáveis projetos políticos, através das redes sociais e de aplicativos de troca de mensagens, se consiste na mais grave ameaça ao ambiente do contraditório, essencial para o exercício da democracia.
Em escala industrial, membros de verdadeiras milícias digitais disseminam mensagens apócrifas contra jornalistas, formadores de opinião, adversários políticos, militares, intelectuais e todo aquele que por eles seja identificado como empecilho ao êxito de seus intentos criminosos. Pela internet esses delinquentes propagam mentiras, espargem alarmismo, fomentam discórdia e distorcem fatos, com o intuito de manipular o poder decisório da opinião pública. Não se valem da ludibriação em caráter aleatório, mas como método de conquista e manutenção do poder político. Suas investidas invariavelmente objetivam desestabilizar as instituições basilares da democracia constitucional. Em suma, a atividade desses grupos atenta contra a soberania da vontade popular.
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A ignóbil campanha difamatória perpetrada contra o ex-Ministro da Secretaria de Governo, General Santos Cruz, homem probo e competente, se tornou caso emblemático do modus operandi desses quadrilheiros virtuais. Imagens de prints que atestariam a participação do General em mensagens trocadas via WhatsApp, nas quais impróprias e grosseiras críticas teriam sido direcionadas ao Presidente da República, viralizaram online. À época, Santos Cruz negou peremptoriamente ser autor de qualquer mensagem ofensiva ao supremo mandatário do país. A despeito disso e de ser amplamente reconhecido pela prestação de relevantes serviços à pátria, o General teve sua exoneração publicada no Diário Oficial da União, em junho do ano passado. Em janeiro do presente ano, após a realização de perícias, a Polícia Federal concluiu que as imagens dos prints foram forjadas. Santos Cruz teve, portanto, sua ilibada reputação submetida a um linchamento público, sem que, ao ser acusado, possuísse condições objetivas para defender sua honra. Como se defender de covardes investidas anônimas? A quem interpelar judicialmente? Como consequência de uma embusteira trama, sofreu um revés de natureza política.
Outro ataque, ainda mais deplorável, foi direcionado à dignidade feminina e à credibilidade da atividade jornalística. No dia 11 de fevereiro, durante audiência da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito das fake news, no Congresso Nacional, desfaçatez e vilania grassaram impunemente. Hans River, ex-funcionário de empresa de marketing digital, que fora convocado pela referida comissão a prestar depoimento sobre supostos compartilhamentos ilegais de conteúdo via aplicativos de troca de mensagens, personificou a sordidez, ao afirmar que Patrícia Campos Mello, uma das mais laureadas jornalistas brasileiras de sua geração, havia se insinuado sexualmente para ele, em troca de informações que pudessem comprometer o Presidente da República. Sem apresentar qualquer evidência ou mero indício, o depoente acusou a jornalista, diante de todo o país, de ter agido abjetamente.
O episódio descrito no parágrafo acima, escarnecedor em sua essência, atesta o inaceitável estado de degradação moral que rege a política contemporânea brasileira. Logo após o proferimento das ofensas, internautas de todo o país replicaram trechos do depoimento, acrescendo a esses outros insultos impublicáveis. A Folha de São Paulo, empresa na qual Patrícia trabalha, institucionalmente repudiou o conteúdo mentiroso das declarações do depoente. No que tange à investigação jornalística realizada por Patrícia, no curso da qual Hans River foi por ela contatado, o jornal se prontificou a publicar documentos comprobatórios da lisura da profissional ultrajada. A relatora da CPMI das fake news, Deputada Lídice da Mata, ingressou com uma representação contra o farsante no Ministério Público Federal.
Estamos em pleno tempo da pós-verdade, no qual frequentemente multidões são influenciadas por notícias falsas, as quais têm potencial para soterrar a dignidade dos indivíduos e perverter a democracia. O direito à liberdade de expressão não pode ser confundido com salvaguarda para o cometimento de crimes como calúnia, injúria e difamação. A quem interessa que o estado democrático de direito seja vilipendiado?