A Venezuela entra, rapidamente, na lista de Estados falidos, em meio a sinais de uma guerra civil de baixa intensidade. Uma maioria esmagadora pede o fim do regime violento, mafioso, de Maduro. A camarilha chavista, porém, engaja-se no golpe da “Constituinte comunal”, a desvairada tentativa de implantar um poder absoluto. Por que, face à catástrofe, Maduro recusa uma transição constitucional, por meio do referendo revogatório ou da antecipação de eleições presidenciais? A resposta não tem mistério: os chavistas temem o espectro da vingança.
O sistema democrático assegura a alternância pacífica de poder porque elimina da cena o medo da vingança. Contados os votos, o perdedor congratula o vencedor, reconhece publicamente o resultado e transita para a oposição. Mesmo em episódios de crise aguda, como o impeachment, a lei é cumprida: a presença de um Judiciário independente garante que o novo governo não ameaçará a liberdade, ou a vida, dos derrotados. No Brasil, o PT gritou “golpe!”, mas circunscreveu sua irresponsabilidade ao palco do teatro político: Dilma, afinal, não chamou os militares para proteger um governo legal ameaçado, nem (ufa!) acorrentou-se ao Planalto, em gesto dramático de resistência cívica.
Nas tiranias, o medo da vingança complica as transições políticas. Hitler só adotou a “Solução Final” quando concluiu que rumava para a derrota militar. O extermínio de todos os judeus do Reich aparecia, aos olhos dos nazistas, como a realização de um objetivo nacional supremo e como uma apólice de seguro contra a retaliação. Longe desse caso extremo, regimes autoritários só cedem pacificamente o poder mediante acordos de transição capazes de dissolver a sombra da revanche. Da “anistia irrestrita” brasileira à “comissão da verdade” sul-africana, contratos de impunidade total ou condicional persuadiram os ditadores a renunciar ao Palácio. O chavismo jamais abdicará sem algo assim.
Circula, na Europa e América Latina, um inédito manifesto de “intelectuais de esquerda” que denuncia, com anos de atraso, o “caráter autoritário” do regime de Maduro. O texto destina-se a sanitizar as preciosas biografias dos signatários, entre os quais encontram-se antigos adoradores da “revolução bolivariana”, como o português Boaventura de Sousa Santos, o brasileiro Chico Whitaker e o peruano Anibal Quijano. Contudo, cumpre involuntariamente uma função útil, acelerando a divisão nas fileiras chavistas. Nicmer Evans, líder da Maré Socialista, corrente dissidente desde a morte do caudilho, assina o manifesto internacional. A procuradora-geral Luisa Ortega, uma fiel histórica, rompeu com o regime. Olly Millán, Hector Navarro e Ana Osorio, ex-ministros de Hugo Chávez, saltaram para a dissidência. A cisão interna é um elemento crucial na transição, pois dela emergem interlocutores viáveis para um acordo.
Maduro descreve seu regime como um “movimento cívico-militar”. A cúpula das Forças Armadas, componente vital do chavismo, mantém-se leal porque extrai rendas milionárias do negócio da distribuição de alimentos importados e, especialmente, pelo temor da vindita. Mas, refletindo a inquietação na oficialidade e entre os soldados, o general Alexis Ramírez renunciou à chefia do Conselho de Defesa Nacional. Sair agora é uma forma de comprar segurança no mercado futuro.
Desenham-se as condições para a negociação da transição. De fato, ao conservar encarcerados líderes relevantes da oposição, o regime opera sob a lógica da troca de reféns, visualizando a hipótese de um intercâmbio político. A saída, que depende de um acordo entre os atores venezuelanos, não prescinde da mediação diplomática. É hora de dissipar o espectro da vingança, garantindo aos chavistas um lugar seguro no jogo da democracia. Se o Brasil tivesse um governo, não seria missão impossível.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 17/06/2017
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