Não deixa de ser uma ironia da história. O Banco Central de Dilma deve passar, em janeiro de 2011, pelo mesmo teste que passou o BC de Lula em 2003: elevar a taxa básica de juros logo na sua primeira reunião.
Os preços estão em alta forte, correndo acima da meta, e, se nada for feito, continuarão a subir em 2011. A expectativa de inflação sobe há dez semanas. Pela teoria e pela prática do regime de metas, um BC autônomo deveria iniciar um ciclo de alta da taxa de juros.
Mas logo de cara?
Deve ter sido essa a pergunta que fizeram em 2003 a Henrique Meirelles, então o novíssimo presidente do BC da era Lula. E foi logo de cara. A taxa subiu na primeira reunião, em janeiro, e voltou a subir na segunda.
Os números hoje são bem diferentes. Meirelles pegou os juros a 25% ao ano e puxou-os para 26,5%, antes de iniciar um ciclo de baixa.
Alexandre Tombini, o anunciado presidente da era Dilma, começará com a taxa a 10,75% e, pelo consenso entre analistas, precisaria puxá-la para 12%. Esses números, aliás, mostram o sucesso da política monetária: caiu tanto o juro nominal quanto o real (descontada a inflação). Este último desabou de 13% ao ano para os atuais 5,5%, mais ou menos, com a inflação na meta de 4,5%.
Mas o jeitão da coisa é o mesmo. Dilma já falou várias vezes de seu propósito de reduzir os juros reais para
2% ao ano, assim como Lula criticava as taxas elevadas da era FHC. No grupo da presidente eleita — e mesmo ali no Ministério da Fazenda — muitos companheiros não apreciam o regime de metas de inflação, acham que os juros já são exagerados e que o BC não deve ser autônomo, mas controlado diretamente pelo governo do PT. Exatamente as mesmas críticas e queixas que Lula ouvia. Esse fogo amigo esquentou quando Meirelles, usando da prerrogativa de autonomia que Lula lhe garantira, promoveu a primeira alta dos juros. Lula bancou.
Como reagirá Dilma? Há uma diferença importante entre os dois momentos. O governo Lula começou em ambiente de quase emergência. Nos meios econômicos, era enorme a desconfiança. O presidente seguiria a cartilha petista, que mandava romper com o sistema financeiro e arrasar as políticas de FHC (metas de inflação, superávit primário e câmbio flutuante) ou manteria o curso da ortodoxia?
O pânico havia passado quando Lula, durante a campanha, assinara a Carta ao Povo Brasileiro, comprometendo-se com a continuidade e o respeito aos contratos. Mas a desconfiança persistia. Ele faria o que estava na Carta? Fez. Apoiou o BC na alta dos juros e sustentou Pallocci no aumento forte do superávit primário. Ganhou confiança, foi premiado com a estabilidade.
Do ponto de vista da política econômica vigente, Dilma precisa fazer a mesma coisa: aumentar o superávit primário — ou seja, segurar o gasto público que disparou nos últimos anos de Lula — e elevar os juros para conter a escalada atual da inflação.
A diferença hoje é que Lula e Dilma estão mais confiantes. Acham que não precisam provar mais nada ao mercado.
Foi isso que levou Lula a promover, com o braço de Guido Mantega, um festival de aumentos dos gastos do governo e da dívida pública bruta. E, curiosamente, foi esse mesmo tipo de excesso de confiança que levou Henrique Meirelles a interromper a alta dos juros em setembro último, quando a ampla maioria dos economistas familiarizados com o regime de metas achava que a taxa básica precisava subir mais um pouco.
Detalhe: o ciclo de alta de juros foi interrompido em plena campanha eleitoral, quando o candidato José Serra mais a atacava, o que deu um caráter político ao episódio.
Na ocasião, Meirelles fez intensa campanha para convencer o mercado e os jornalistas de que sua decisão fora estritamente técnica. A tese: a economia já estava desacelerando e, dados os bons resultados da política de metas e maior credibilidade do BC, a taxa de juros necessária para conter a inflação já havia caído. Convenceu alguns, outros continuaram com um pé atrás. Mas todos entenderam que o BC havia tomado uma boa dose de risco.
O risco aconteceu. A inflação sobe forte, a economia continua aquecida, especialmente o consumo, os gastos públicos continuam em alta e com previsão de mais despesas para 2011. Vai daí que as expectativas de inflação também sobem e o mercado indica isso pelas taxas de juros: na negociação de títulos públicos para meses à frente, a inflação embutida já passa dos 7,5%.
Desconfiança, claro. Quando Lula simplesmente mandou gastar e aumentar a dívida para gastar mais, a maioria entendeu como um pecado tolerável. Afinal, tinha havido a crise e o presidente estava empenhado na eleição de Dilma. Depois, as coisas se ajeitariam.
Mesmo assim, Mantega precisou inventar uma contabilidade para justificar as manobras. Não pode simplesmente dizer “dane-se a austeridade”. Martelou as contas para dizer que continuava fiel ao superávit primário. O pessoal fingiu acreditar, entendendo que, com Dilma (e Pallocci), a política econômica voltaria ao normal.
Voltará?
Lula, sempre mais pragmático, nuncase fechou em convicções ideológicas. Já a presidente Dilma, convém lembrar, é economista de formação, com sólidas convicções desenvolvimentistas. Sempre esteve mais ao lado de Mantega, em oposição à dupla Pallocci/Meirelles. Seguindo sua natureza, Dilma forçaria o BC a derrubar os juros, mesmo ao preço de mais inflação, para permitir mais crescimento econômico imediato. Por essa tese, os investimentos resolvem o problema da inflação mais à frente.
O outro lado entende que os juros precisam cair, mas não assim na marra e, sobretudo, não com inflação e expansão do gasto público e da dívida). Dilma pagará o preço da ortodoxia monetária e fiscal ou achará que está na hora de fazer do jeito petista?
Logo veremos, mas os sinais emitidos até aqui sugerem que vai pelas suas convicções.
Fonte: O Globo, 25/11/2010
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