Em geral, pensamos que os dilúvios dos livros sagrados são mitos ou – usemos uma palavra que voltou – “mistificações”. Mas o fato é que eles existem e há milhões que tomam suas histórias como exemplares ou verdadeiras. Os livros sagrados podem falar do fim do mundo por água ou fogo.
Quando me “politizei” e fui batizado no marxismo nacional de um Marx em português, censurado pelos comunistas soviéticos, eu achava que o mundo, obviamente, não tinha fim. Pragas, dilúvio, Sodoma & Gomorra, água virando vinho, mortos ressuscitando e o amor ao próximo como um novo mandamento, era uma balela. Intrigava-me, contudo, a passagem da multiplicação dos pães, porque era isso que eu queria para o Brasil. Essa ética da caridade e da compaixão que nos põe no lugar do outro e dele nos aproxima sempre fez parte da minha fé.
Como estudante e depois profissional dos costumes humanos, voltei a aprender e a ler sobre muitos dilúvios. Mais que isso: graças às teorias francesas do sacrifício e da reciprocidade, aprendi que há um pacto implícito entre deuses e homens, a parte e o todo, o singular e o universal, o infinitamente dependente (o encapsulado e finito) e o todo-poderoso (o encapsulador e infinito) em todas as sociedades conhecidas. A cada abuso, erro, descaso ou exagero de um lado, há uma reação do outro. Se os deuses falham, podemos trocá-los. Sem nossa crença, eles, como os ossos eleitos, perdem o poder e são esquecidos.
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Sem essa aliança, porém, a vida não faria sentido para muita gente. Os cargos exclusivos (de Deus, rei, papa, presidente, etc…) contêm grandes poderes e, por isso mesmo, imensas obrigações. Dilúvios não chegam por acaso. E o mundo pode, sim, se acabar pelo lado onipotente que compartilhamos com as forças cósmicas ou “divinas”.
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Virei religioso? Não. Apenas constato que estamos vivendo infernos. Não os inteirinhos astrais das colunas sociais de fofoca dos boquirrotos, mas catástrofes reais. Se continuarmos assim, chegamos ao objetivo desejado por muita gente: acabar de vez com o País!
Em 2 de setembro de 2018 (há apenas quatro meses), o Museu Nacional pegou fogo. Foi – junto do Museu de Arte Moderna do Rio, em 1978; do Teatro Cultura Artística, em 2018; do Instituto Butantã, em 2010; do Auditório Simón Bolívar, em 2013; do Museu de Ciências Naturais das PUC-Minas, em 2013; do Centro Cultural do Liceu de Artes e Ofícios, em 2014; do Museu da Língua Portuguesa, em 2015; da Cinemateca Brasileira, em 2016 – o último de uma enorme e vergonhosa lista de casas de cultura mortas por incêndios.
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Nós, brasileiros trabalhadores, comunistas, positivistas, professores, nacionalistas, espíritas, católicos, crentes, caridosos, saudosos, jornalistas, extremistas, generosos, sacanas, macumbeiros, comedores de arroz com feijão, carnavalescos, riquinhos, políticos, malandros, amantes de praia e sol, poetas, ladrõezinhos, descrentes de livros e de estudo, mas crentes de tudo, incendiamos uma porrada de museus!
Um marciano diria que os odiamos. Se fossem bancos ou supermercados haveria gravidade. Mas como é museu e cultura, a culpa é inconsciente. Ela decorre, diria o observador marciano, de uma enorme e compulsiva indiferença institucional. De uma ausência exemplar de educação como valor – como instrução, conhecimento e sentimento de história. Coisas públicas que morrem sem causas, morrem porque foram suicidadas por suas sociedades, devidamente devastadas por outros problemas e questões.
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Por 30 anos, trabalhei no Museu Nacional no qual passei de estudante a antropólogo social. Nos meus diários de campo, anotados a partir de 1961, eu escrevia orgulhoso e por precaução, caso perdesse a vida: Diário de Campo de Roberto DaMatta, antropólogo do Museu Nacional da Quinta de Boa Vista. Mas vejam a ironia: eu estou vivo e o Museu Nacional, que não deveria (e não poderia) morrer, sumiu num incêndio anunciado conforme escrevi nessa coluna.
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Agora, estamos diante de outro recorrente dilúvio: o da lama de uma mina que, como um mar mortal e viscoso, liquidou com a vida de centenas de pessoas, deixando um rastro ecológico que simboliza o lamaçal no qual transformamos o Brasil.
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Ouço um professor dizer na televisão que a palavra que ele mais ouviu em Brumadinho foi “impunidade”. Mas como punir se ainda não sabemos se adotamos a ética republicana da igualdade impessoal; ou a da proteção devida à casa e aos amigos? A cabeça se elege com a impessoalidade do compromisso de “consertar o Brasil”, mas o coração não se move. Há uma enorme contundência, menos a de amar museus e cortar a própria carne.
Fonte: “Estadão”, 30/01/2019