Vivemos tempos de polarização. Você já deve ter percebido. Na mesa de jantar, no trabalho, nos táxis, o futebol vai perdendo espaço para outro tipo de discussão: Lula, Temer, reformas, eleições. Não é que as pessoas estejam apenas mais interessadas na política; elas têm opiniões mais fortes também.
Em algum momento, alguém acreditou que a internet e as redes sociais poderiam servir para unir as pessoas e solucionar discordâncias. Ocorreu o contrário. Confrontados com a opinião alheia que nos desagrada, reafirmamos ainda mais nossa convicção. A quantidade de informação circulando na rede é tamanha que dá para cada grupo encontrar os fatos e os dados de que precisa para montar sua própria narrativa.
As pessoas estão cada vez mais distantes em suas escolhas políticas; o meio vai aos poucos se esvaziando (ainda que, num país como o Brasil, ainda seja a franca maioria). Ao mesmo tempo, não consigo deixar de notar semelhanças entre os lados opostos; entre a esquerda e a direita que cada vez mais dominam as ruas e as redes sociais. Por trás de ideologias tão díspares, vemos comportamentos e atitudes estranhamente similares, o que me indica que, talvez, as diferenças no campo das ideias não sejam o fator mais importante.
Estamos acostumados a olhar para as divisões políticas antes de tudo do ponto de vista da ideologia. Proponho uma outra hipótese: as ideias são elementos secundários de uma dinâmica social que consiste principalmente na identificação do indivíduo com um grupo: sua grande tribo. Sendo assim, não importa muito o conteúdo das ideias de cada lado: eles acabarão se comportando de maneiras muito parecidas. As cores mudam, as formas permanecem. Um lado se veste de vermelho e o outro de verde e amarelo, mas coxinhas e petralhas são, na verdade, muito próximos.
Para começar, nenhum dos dois tolera a imprensa. A esquerda jura que a mídia tradicional é golpista. A direita, imitando seu ídolo internacional Donald Trump, fala em “fake news”. Ambas têm seus blogs e sites de qualidade duvidosa para reafirmar todas as suas crenças preestabelecidas. Tudo o que vem do mainstream está contaminado pela ideologia rival. Como justificar que a sociedade esteja tão equivocada? Aí não faltam teorias da conspiração. Para a esquerda, é o capital financeiro que propaga o neoliberalismo pelo mundo em desenvolvimento. Para a direita, o mesmo capital financia a ideologia do globalismo, que quer abolir os países e as culturas tradicionais. De um lado, irmãos Koch; de outro, George Soros.
A briga se estende às salas de aula. O Projeto de Lei Escola sem Partido busca agir como uma lei da mordaça para todos os professores, impedindo-os de se posicionar e, a bem da verdade, de tratar de temas políticos, religiosos e ideológicos em sala de aula. A proposta de lei inviabiliza qualquer boa aula (ao menos da área de humanas) e, se aplicada, deixaria os alunos completamente alheios a importantes discussões. Mas dá para entender de onde ela vem. É uma reação direta a um enorme número de professores de esquerda que encaram como sua missão na escola converter os jovens a sua própria visão de mundo. Falam em ensinar “pensamento crítico”, mas com isso não querem passar um ferramental cognitivo para permitir aos alunos pensarem por si mesmos e questionarem tudo; e sim aceitarem, sem questionamento algum, as críticas que os professores fazem ao sistema. Em ambos os casos, o principal é impedir que a ideologia do outro lado chegue aos ouvidos das crianças.
Por trás dessas posturas está uma mesma atitude fundamental: ambos os lados encaram tudo na sociedade como nada mais do que uma guerra pelo poder. Não existe objetividade ou imparcialidade: devo em todos os atos ajudar meu time. Ao me manifestar em público, não procuro a verdade, mas apenas uma narrativa conveniente para o meu lado, ou seja, que persuada as pessoas que me ouvem. Não há nenhum interesse em cooperar para, quem sabe, produzir uma sociedade melhor. O outro lado não quer o bem da sociedade; ele é maléfico e deve ser extirpado. São comunistas ou fascistas, gente que, na melhor das hipóteses, podemos tolerar (enquanto não temos a força para esmagá-los), mas jamais aceitar como pares legítimos na construção da sociedade. Nosso lado tem o monopólio da virtude.
Nesse cenário de conflito tribal, os participantes preferem vitórias simbólicas à capacidade de realizar algo de fato. Os atos que servem apenas para manifestar seu amor ou repúdio a algo falam mais alto. Até expressões verbais parecidas foram desenvolvidas: esquerda “lacra”, a direita “mita”. É o jeito de se referir a uma resposta que supostamente fecha o debate, deixando o outro lado humilhado e sem resposta. Os representantes valem pelo que simbolizam, e não por sua capacidade real de trabalhar pelo país: um Congresso de cada vez mais Bolsonaros e Jean Wyllys.
Para nossa política, o saldo geral é lastimável. Estamos perdendo a capacidade de dialogar e chegar a acordos. O status quo brasileiro sempre foi corrupto. Radicais de direita tanto quanto os de esquerda não toleram mais a corrupção, o que é bom. O problema é que eles também acabam rejeitando, como corrompidas, características da nossa política que são, antes, virtudes. Verdadeiras necessidades num país democrático.
Saber ceder, fazer compromissos, encontrar um meio-termo; longe de serem “traições” de uma agenda santa, são justamente o que permite que vivamos em uma mesma sociedade sem matar uns aos outros. Não é preciso dizer que, se esse tipo de mentalidade intolerante se alastrar pelo país, a sociedade acaba; caímos na guerra civil.
É bom que as pessoas se interessem mais por questões políticas. Sem isso, a roubalheira continuaria a comer solta e totalmente impune. Estamos mudando isso. Entretanto, na medida em que se politizar signifique também participar de forma mais fanática dessa guerra pelo poder, nos tornamos pessoas piores. Pessoas menos dispostas a ouvir e aprender, menos dispostas a ceder, menos dispostas a cooperar. Se não soubermos transcender esse tribalismo, o interesse renovado na política terá sido em vão ou até nocivo; melhor seria ter continuado a falar só de futebol.
Fonte: “Época”, 24/07/2017.
No Comment! Be the first one.