O início de 1994 foi turbulento na Itália. Em 26 de janeiro, dois anos depois do início da Operação Mãos Limpas, o empresário Silvio Berlusconi anunciou num vídeo de nove minutos sua intenção de entrar na política. Para ele, alvo das investigações, era isso ou a cadeia. A eleição de 27 de março se deu num país polarizado entre a coalizão de Berlusconi, à direita, e uma aliança em torno de Achille Occhetto, à esquerda. Embora Berlusconi e o premiê socialista Bettino Craxi tivessem sido sócios informais em vários esquemas corruptos, a reforma política que tentou recompor o sistema partidário aos frangalhos favoreceu a polarização e deu vitória a Berlusconi. Seu primeiro governo marcou o início da reação à Mãos Limpas. Limitou a ação dos procuradores, fez prescrever crimes e garantiu sobrevida aos “onorevoli” que se protegiam sob o manto do foro privilegiado no Parlamento italiano. Vinte anos depois, a Itália se tornaria um país ainda mais corrupto.
Leia mais de Helio Gurovitz:
O reajuste escandaloso do STF
A estratégia dos candidatos
O dilema do prisioneiro Lula
Naqueles primeiros meses de 1994, um livro improvável, escrito no começo do ano e lançado antes da eleição, tornou-se best-seller durante a campanha: Direita e esquerda, do filósofo Norberto Bobbio. Mesmo depois da queda do Muro de Berlim, ainda que muitos proclamassem o “fim da história” com a difusão do capitalismo e da democracia liberal pelo planeta, Bobbio insistia que o embate ideológico não estava esgotado. As palavras “direita” e “esquerda” continuavam a expressar ideias e sentimentos políticos claros. As eleições italianas daquele ano demonstraram que Bobbio tocara num nervo exposto. Hoje ninguém tem muita dúvida da persistência de campos antagônicos na política, comumente associados às duas palavras. Mas qual a essência dessa distinção? Até que ponto as ideias de Bobbio se aplicam ao Brasil que vive o crepúsculo da Operação Lava Jato e o maior clima de polarização política desde as vésperas do Golpe de 1964?
Na essência, Bobbio distingue a esquerda da direita por meio de sua atitude diante da igualdade.
“Há, de um lado, gente que acredita que os seres humanos são mais iguais que desiguais; de outro, gente que acredita que somos mais desiguais que iguais”, escreve. Ele associa o primeiro tipo à esquerda, que busca direitos sociais como trabalho, saúde ou educação. À direita, associa o reconhecimento da “individualidade irredutível de cada pessoa”. Desmente quem associa a direita à preservação da tradição ou à liberdade. Bobbio põe a oposição entre liberdade e autoridade num eixo distinto. Diz haver liberais de esquerda e de direita; assim como extremistas autoritários nos dois polos, a extrema-direita e a extrema-esquerda. “A diferença entre extremismo e moderação diz respeito aos métodos, enquanto a antítese entre esquerda e direita concerne aos valores. A diferença de valores é mais forte que a de métodos”, afirma.
Objeções de três tipos foram levantadas à definição de Bobbio. Primeiro, que os termos “direita” e “esquerda” perderam sentido preciso e são aplicados a gosto, segundo as dezenas de eixos de oposição disponíveis no mundo contemporâneo (de drogas e aborto a livre-comércio e privatizações). Segundo, críticos identificados com a direita reconhecem que a distinção existe, mas dizem que o critério de Bobbio não é preciso e, elaborado por um filósofo confessadamente de esquerda, atribui ao campo oposto uma característica negativa (“desigualdade”) em vez de uma positiva (“liberdade” ou “individualidade”). Terceiro, críticos identificados com a esquerda afirmam que o critério não é suficiente e deveria incluir na esquerda características como não violência ou liberdade. O debate prossegue até hoje. O mais difícil talvez seja reconhecer que ambos os termos não precisam ter um sentido preciso para despertar paixões. Bobbio deixa em aberto a questão principal: por que eles se tornam tão presentes em momentos de crise aguda, como na Itália de 1994 e no Brasil de 2018, a ponto de definir a identidade política de cada um e cindir a sociedade ao meio?
Fonte: “Época”, 09/08/2018