Quanto vale o poder de reescrever a própria história? Quanto um político inescrupuloso estaria disposto a pagar para despejar sobre os eleitores uma espécie de efeito amnésia, como uma onda a apagar suas pegadas na areia? Quantos criminosos de guerra não gostariam de viver sob nova identidade, sem deixar vestígios de sua pretérita monstruosidade? Afinal, é humano pensar na vida como um filme a ser editado, no qual o protagonista seria sempre o herói, e o desfecho sempre feliz.
Pois não se está aqui a falar em obras de ficção, em que o sonho do regresso ao passado costuma se materializar por meio de alguma máquina do tempo. Nos dias que correm, existe artefato produzido pelo arsenal jurídico capaz de alcançar idêntico objetivo, só que no mundo real: o direito ao esquecimento.
Há poucos meses, o Tribunal de Justiça da União Europeia determinou que o Google retirasse do ar o link de uma notícia veiculada há cerca de 16 anos pelo jornal espanhol La Vanguardia sobre o leilão de um apartamento de propriedade de Mario Costeja González. Tratava-se de um leilão para pagamento de dívidas dos proprietários à Seguridade Social. Embora o caso estivesse encerrado há anos, González continuava associado à dívida, pois a edição do jornal fora digitalizada e carregada na internet em 2008. A decisão fundou-se no chamado direito de ser esquecido. Criou-se, assim, precedente para que qualquer sítio da internet possa ser obrigado a remover dados “inadequados ou que não sejam mais relevantes”.
Ninguém desconhece a ação dos agentes de informações – os data brokers – que são empresas que se dedicam a recolher, a comprar e a vender informações pessoais sobre os usuários da internet, para alimentar diversos mercados, como os da publicidade e das campanhas eleitorais. Daí a relevância do debate sobre a segurança e a proteção de dados pessoais no ambiente digital, como expressão das garantias constitucionais da intimidade e da privacidade.
Nada obstante, dada a amplitude dos termos utilizados no precedente da Corte de Justiça da União Europeia, o direito ao esquecimento poderá ser invocado para objetivos menos nobres, como a retirada de notícias sobre fatos de interesse público dos sítios de jornais, revistas e redes de TV. Além disso, a produção de documentários de inestimável valor histórico e a veiculação das retrospectivas jornalísticas também estarão em risco.
O parâmetro da “inadequação ou irrelevância” da informação é problemático. Em primeiro lugar, porque há informações que podem soar inadequadas aos ouvidos de quem se sinta atingido, mas cuja divulgação seja do mais cristalino interesse social. Por exemplo, há decisões judiciais que consideram inadequada a veiculação de documentários e obras romanceadas de viés histórico sobre pessoas que, embora condenadas pela Justiça, já tenham cumprido a pena. A margem de subjetividade sobre o valor histórico da informação em cada caso é enorme, dando azo a insegurança e incongruências.
[su_quote]Os contornos do direito ao esquecimento não podem ser elastecidos a ponto de torná-lo verdadeiro estratagema para queimar os arquivos dos produtores de conhecimento[/su_quote]
Em segundo lugar, porque nem sempre é possível distinguir, de antemão, os dados que se tornarão irrelevantes e poderão ser descartados, daqueles que serão essenciais à preservação da memória coletiva e da historiografia social.Em geral, a relevância é associada à contemporaneidade da notícia aos fatos, o que nem sempre é um critério válido. Quem poderia imaginar, por exemplo, que uma fotografia, publicada pelo jornal “O Globo” no dia seguinte ao suposto acidente automobilístico que determinou a morte da estilista Zuzu Angel, revelaria o rosto de um ex-agente da ditadura militar supostamente envolvido no episódio? Aqui, caso tivessem sido aplicados os standards de relevância e contemporaneidade da notícia, a foto certamente já teria sido descartada.
Em interessante postura compromissória, a Corte Constitucional italiana procurou harmonizar a liberdade de imprensa e o direito difuso à informação com a proteção da honra e da imagem, mediante decisão de ponderação que impôs a veículo de comunicação o dever de atualizar a notícia acerca de determinada pessoa. Assim, a Corte considerou que seria uma forma de censura determinar que um portal de notícias retirasse do ar uma matéria de interesse público, mas impôs um dever de atualização da notícia, evitando que se cristalizasse para o leitor uma informação antiga, que já não mais expressava a realidade sobre o assunto em questão.
Portanto, os contornos do direito ao esquecimento não podem ser elastecidos a ponto de torná-lo verdadeiro estratagema para queimar os arquivos dos produtores de conhecimento, cultura e informação – uma espécie de censura no retrovisor. É imperioso que se faça no Brasil um esforço doutrinário e jurisprudencial no sentido de uma calibragem adequada que tome na devida conta a preservação das liberdades de expressão e de imprensa, e, sobretudo, o direito à informação da sociedade. Banida a censura prévia pela Constituição de 1988, não é possível que o mero desejo de ser esquecido se convole em verdadeira censura a posteriori.
O passado não é o que passou, mas o que ficou do que passou. Na feliz síntese do jurista português Paulo Otero, conhecer o passado é mergulhar nas raízes do presente.
Fonte: Blog Os constitucionalistas, 19/10/2014
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