*Henrique Ramos
Recentemente, o falecimento do influenciador e ativista político estadunidense Charlie Kirk gerou repercussão a nível mundial, sobretudo nas redes sociais. Tal acontecimento foi seguido, nas redes, de inúmeros comentários de ódio por parte de opositores políticos de Charlie e da direita republicana. A tensão política estendeu-se, em parte, ao contexto brasileiro, onde se pôde verificar o ódio extremo voltado para figuras populares da direita brasileira, com falas que incitam a violência e até a morte de algumas personalidades. Mediante isso, muitos indivíduos, especialmente da direita, demonstram grande indignação em relação ao ódio destilado por alguns de seus opositores, que insistem em desejar a morte e desqualificar adversários enquanto sujeitos políticos. Há uma preocupação crescente com o uso do discurso para “desumanizar” adversários políticos, tendo em vista um possível risco à dignidade de determinados indivíduos e grupos.
Com relação a tais conflitos e acontecimentos, levantam-se algumas relevantes questões: “Até que ponto a liberdade de expressão pode ser exercida para ferir a reputação dos indivíduos? O discurso de ódio representa alguma ameaça para a liberdade e a democracia?” E uma dúvida importante para nós: “Como liberal, não devo defender a liberdade de expressão irrestrita, apesar de tudo?”. Tais questões, que são evidentemente pertinentes ao contexto atual, podem encontrar soluções se nos voltarmos para a filosofia liberal com olhar demasiado atento.
O filósofo, jurista e liberal Jeremy Waldron (1953) oferece uma interessante reflexão sobre o assunto em seu livro The Harm in Hate Speech. Waldron argumenta que, por vezes, discursos de ódio não possuem função meramente expressiva, mas são expostos com a intenção de que as ideias enunciadas possam, de algum modo, se tornar parte do tecido social, fazendo-se presentes nas relações entre os indivíduos. Em outras palavras, um indivíduo que se dirige ao público dizendo: “Meus opositores políticos são fascistas e devem morrer”, não apenas toma esse discurso como forma de expressar seus sentimentos e pensamentos, mas espera que se possa gerar algum efeito nas consciências de outras pessoas, o que pode vir a acontecer. Costumamos ouvir a ideia de que “se discursos extremistas forem permitidos, os indivíduos naturalmente se darão conta da radicalidade desses discursos e se voltarão contra eles”. O que ocorre, ao menos no cenário brasileiro, é o aumento significativo de grupos extremistas, discursos de ódio e polarizações políticas violentas. Waldron diria que a ideia de permitir discursos extremos de ódio, na esperança do bom senso, pode constituir uma ingenuidade por parte de alguns liberais. O filósofo neozelandês sustenta, por outro lado, que discursos de ódio possuem, efetivamente, poder para ameaçar os fundamentos da democracia liberal e a dignidade dos indivíduos. Para Waldron, discursos que incitam à violência, ao ódio e à discriminação funcionam como veneno de ação lenta, que pouco a pouco danifica o ambiente de respeito mútuo que deve haver socialmente e confunde mesmo os indivíduos mais bem-intencionados quanto à manutenção da paz e da estabilidade.
Pode-se dizer que Waldron estende a lógica lockeana de defesa dos direitos naturais — a saber: vida, liberdade e propriedade — para o âmbito da reputação e da dignidade, que são igualmente importantes. Voltando rapidamente a atenção para a filosofia de John Locke (1632-1704), sobretudo na leitura de Dois Tratados Sobre o Governo, especialmente no segundo tratado, Locke fala a respeito do estado de natureza do homem, de seus direitos naturais e da posterior submissão à sociedade civil, da qual ele decide fazer parte. O filósofo nos diz que é próprio da espécie humana o direito natural à liberdade, onde o indivíduo regula suas ações e dispõe, do modo como julgar apropriado, de suas posses. Contudo, apesar de gozar de plena liberdade, não é garantido ao homem o direito de prejudicar o outro. É próprio da espécie humana o direito à vida, à liberdade e à propriedade, e temos evidente conhecimento disso pela luz da razão. Os homens também possuem, reciprocamente, perfeita igualdade, de modo que nenhum se encontra acima ou abaixo de outro, não possuindo poder absoluto sobre nenhum indivíduo. Ademais, quanto aos transgressores das leis naturais e aos indivíduos que apresentam ameaça a outros, cabe proporcional punição. Os homens estão, desse modo, dotados de autoridade para punir quem quer que apresente riscos ao seu modo de vida, marcado pelo respeito aos direitos naturais da espécie.
Diante dessa luz que forma a base da filosofia do liberalismo, pode-se dizer agora que os discursos de ódio que, nos últimos tempos, são lançados na tentativa de atingir e invalidar certos grupos políticos podem, talvez, ser encarados como ameaças ao ambiente de tolerância e respeito mútuo pressupostos na democracia, uma vez que agridem a reputação de indivíduos enquanto sujeitos políticos e membros legítimos da sociedade civil, dotados de direitos naturais. Não se refere, obviamente, a qualquer discurso de tom ofensivo, mas sim a mensagens de ódio extremo que ferem violentamente a dignidade dos indivíduos, que, por serem membros legítimos da sociedade política, também são objetos da proteção do Estado, bem como os indivíduos que os ameaçam são legitimamente sujeitos a punição, de modo a garantir a ordem e o ambiente necessário para a democracia. Em suma, a liberdade de expressão, assim como todas as faces da liberdade, tem seu limite na ameaça real à liberdade de outros indivíduos. Quanto a isso, não se vê ingenuidade no liberalismo e em sua proposta democrática, se bem aplicada.
Henrique Ramos Silva é graduando em filosofia pela UNIFESP