Por Marcio Leopoldo Maciel
Para que exista racismo é preciso que duas crenças estejam conjugadas. A primeira, que existem raças. A história registra diversos modos pelos quais essa crença foi afirmada. A defesa mais comum é a biológica e consiste em afirmar que existe uma característica física, hoje diríamos genética, que é compartilhada por um grupo de pessoas e apenas por esse grupo.
Tornando um pouco mais complexo, alguns dizem que a raça não é uma propriedade específica, mas um conjunto de características compartilhadas. Raciocínio semelhante fazemos quando distinguimos frutas. Existem maçãs, morangos e melancias. O que faz uma maçã ser uma maçã não pode ser a cor, porque existem verdes e vermelhas. Além disso, mesmo que todas fossem vermelhas, elas seriam tão vermelhas quanto os morangos e morangos não são maças. Neste caso, diríamos que a cor não é a característica distintiva. Mesmo assim, acreditamos haver uma distinção. Pode ser o sabor, a consistência, o tamanho, enfim. Pode ser que o conjunto dessas propriedades forme aquilo que a maçã é e que a torna diferente de morangos.
A segunda crença necessária para que exista racismo é a crença de que há uma hierarquia entre as raças. Uma distinção de valor. Basicamente, uma raça superior e outra inferior. Para haver racismo não pode haver igualdade valorativa entre as raças.
Portanto, para contestar o racismo, devemos ou negar a existência de raças ou afirmar que não existe diferença valorativa entre elas. É precisamente neste ponto que se dividem aqueles que são favoráveis às ações que levam em conta a raça e aqueles que são contrários à utilização desse conceito. Dito de outro modo, em um caso específico, aqueles que defendem cotas raciais e aqueles que as rejeitam. Os primeiros acreditam que, assim como maçãs são diferentes de morangos, os homens são divididos em grupos precisos. O que não devemos fazer, segundo eles, é acreditar que uma raça é superior à outra.
Aqueles que não aceitam a divisão por raças argumentam que não dispomos de um critério de distinção e que, por conta disso, não faz sentido falar em raças, menos ainda em igualdade racial. A ciência, dizem, está do nosso lado. E é verdade: raça, do ponto de vista biológico, não pode ser defendida. Porém, nem tudo é científico e talvez nem tudo possa ser transformado em uma questão a ser tratada pela ciência.
Assim, quem defende a existência de raças argumenta que há outros modos de mostrar a distinção. Por exemplo, a diferença de cor. Existem os brancos e existem os negros. Embora seja, por vezes, difícil afirmar com exatidão a cor de uma pessoa, é verdade que essa diferença existe. Mas isso basta para sustentar a existência de raças? Se fosse possível, que força teria esse conceito? Qual o critério que nos permite escolher a cor da pele e ignorar a cor dos olhos? Uma questão intrigante: é comum dizermos que há pessoas brancas de olhos verdes e negras de olhos verdes, mas por que não dizemos que há pessoas de olhos verdes que são brancas e outras que são negras? A diferença é sutil, mas gigantesca.
Talvez, diriam alguns, a exemplo de maçãs, possamos defender a existência de raças afirmando que elas são formadas de conjuntos de características em que a cor da pele contribui, mas não é exclusiva. Como homens não são coisas, há questões culturais que devem entrar nesse conceito. Neste caso, propriedades não exatamente científicas como a língua, as crenças, os costumes. Assim, priorizando algumas características e ignorando outras, teríamos raças.
O problema com esse raciocínio é que ao eleger mais de uma característica como distintiva, ao elencar traços físicos como a cor da pele e traços não físicos como a cultura, mais pressupostos são assumidos, o que torna difícil provar a tese. Por exemplo, se a cor da pele é um dos atributos distintivos da raça juntamente com a língua, como é que brancos ingleses seriam considerados da mesma raça que brancos italianos? Costumes e crenças falham aqui também.
Outra via, possivelmente mais elaborada, é a do reconhecimento: raça é a crença que um grupo de pessoas possui de si mesmo – ou seja, elas se reconhecem como tal. Porém, isso não faz de um grupo uma raça. Os gremistas se descrevem como um grupo, mas não formam uma raça. Os ingleses, além de se descreverem como grupo, possuem costumes e uma língua em comum. Mesmo assim, também não são membros de uma raça. Por que alguns reconhecimentos são mais relevantes do que outros?
Aqueles que defendem a existência de raças podem negar a hierarquia entre elas – igualdade racial, mas aceitam a hierarquia entre os grupos. Para eles, as características que forjam as raças são mais importantes do que aquelas que forjam gremistas ou ingleses.
Já para quem nega a existência de raças, tanto faz ser gremista, inglês, negro ou branco. Não há hierarquia entre grupos. Todos os homens são iguais e uns são diferentes dos outros. O que define uma pessoa é sua singularidade.
Por conta desses pressupostos, a principal diferença entre esses dois lados da disputa é o modo pelo qual cada um pretende combater o racismo. Aqueles que defendem a ideia de igualdade racial querem que os indivíduos assumam o que eles chamam de identidade racial. Concomitantemente, pretendem educar a população para, ao reconhecer a sua raça, respeitar a raça do outro. Aqueles que rejeitam conceitos raciais querem educar a população para ignorar a cor da pele. Pretendem que a cor da pele tenha a mesma relevância política que a cor dos olhos – nenhuma. Os primeiros querem impor uma identidade fixa, coletiva, por meio da qual cada indivíduo é uma mera ocorrência. Os segundos querem o reconhecimento do indivíduo, de suas múltiplas identidades. É uma ideia simples: pessoas não podem ser tratadas como se fossem maçãs.
Assim, um resumo da disputa poderia ser o seguinte: de um lado, aqueles que entendem que pessoas compartilham atributos, de outro, aqueles que acreditam que atributos compartilham pessoas.
Publicado em 26/08/2010 em “O Globo”
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