A Comissão Especial da Câmara para a reforma política ressuscitou, no relatório final aprovado na madrugada de ontem, uma ideia descabida que o próprio plenário derrubara em 2015: o tal “distritão”. É uma ideia tão estapafúrdia, que teria o condão de piorar o que já é ruim no sistema político brasileiro.
“De todos os modelos propostos, o distritão é, sem dúvida, o pior”, afirma o cientista político Jairo Nicolau num estudo detalhado sobre o assunto concluído no mês passado. “É difícil entender por que justamente ele tem conseguido atrair tantos apoiadores entre os parlamentares.”
A única virtude do distritão é ser fácil de entender. Cada estado passaria a ser considerado um distrito eleitoral, com um número fixo de cadeiras na Câmara. Seriam eleitos para elas os candidatos mais votados, ordenados pelo número de votos. Já não é assim? Não, não é.
A eleição dos deputados segue uma regra conhecida por “quociente eleitoral”. O total de votos válidos para deputado é dividido pelo número de cadeiras do estado, depois somam-se todos os votos recebidos por um coligação partidária, e cada uma tem direito a um número proporcional de deputados segundo sua votação. Dentro da representação de cada coligação, são então eleitos os candidatos mais votados.
A representação proporcional funciona no Brasil desde 1934. É verdade que, na forma do quociente eleitoral, ela é imperfeita, por criar a oportunidade de que “puxadores de voto” distorçam o resultado. Com votações milionárias. candidatos como Tiririca ou Enéas arrastaram para a Câmara até mesmo representantes com pouco mais de 700 votos.
Partidários do distritão, como o presidente Michel Temer ou o ex-deputado Eduardo Cunha, costumam argumentar ainda que, se implementado, ele teria pouco efeito no resultado final. Para sustentar essa visão, apresentam uma simulação, caso a nova regra estivesse em vigor na última eleição.
Nicolau simulou os resultados de 2014 sob a vigência do distritão. Apenas 46, ou 9%, dos atuais deputados não se elegeriam – entre eles o atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia, eleito com 53.167 votos no Rio de Janeiro, estado de quociente eleitoral igual a 166.814. Alguns partidos teriam sido beneficiados – o PSD ganharia seis deputados; o PT, três. Outros, prejudicados – PV e PHS perderiam três cada um. Boa parte ficaria na mesma – como PSDB, PP ou PPS.
Mas seria um erro acreditar que essa simulação hipotética representa um cenário fiel para uma eleição a ser realizada sob outras regras. “A ilusão da simulação eleitoral é a crença de que o resultado se verificará em eleições futuras”, escreve Nicolau.
Outro argumento dos defensores do distritão é atribuir a ele o barateamento das campanhas. Com menos recursos graças ao final do financiamento empresarial, um candidato poderia concentrar-se apenas na própria propaganda, sem se preocupar em destinar dinheiro a partidos e coligações. Com partidos em baixa, diz Nicolau, um candidato também poderia fingir, na campanha, que não pertence a nenhum.
Se é fato que o distritão é mais fácil de entender e resolve o problema dos “puxadores de voto”, ele cria outros mais graves. Eis suas principais deficiências:
1) Desperdício de votos – Pelo sistema atual, o voto de todo eleitor é levado em conta. Mesmo que seu candidato perca, ele é somado no total de votos do partido e serve para para calcular o tamanho da bancada. No distritão, uma quantidade enorme de votos seria desperdiçada. Em 2014, teriam sido 30,6 milhões, ou 34% dos votos em algum nome, de acordo com a simulação de Nicolau. Em alguns estados, tal proporção teria sido escandalosa: 62% no Amapá, 50% no Acre e no Espírito Santo, 46% no Maranhão. O desperdício de representatividade é um problema que acomete todo sistema distrital de votação. Serve de argumento para seus críticos em países como Inglaterra ou Estados Unidos. No caso do distritão, esse problema é adotado também no aumentativo.
2) Desvalorização dos partidos – Ao transformar a eleição para deputado essencialmente em majoritária, o distritão tornaria oficial a inconsistência dos partidos, hoje ainda obrigados a manter um mínimo de coerência ideológica. Nisso, consegue ser pior até mesmo que o famigerado voto em lista fechada – sistema em que o eleitor vota no partido, e os eleitos em cada um são determinados por uma lista elaborada pelos líderes, não pelos votos na urna. O distritão transformaria a Câmara em algumas centenas de representantes diretos de corporações e interesses, sem vículo algum com ideologias, valores ou visões de mundo.
3) Fortalecimento dos famosos – Como em toda eleição majoritária, o distritão daria vantagem na largada aos candidatos mais conhecidos, cuja fama já lhes garante votos, em detrimento dos novos. Não apenas políticos. “É razoável imaginar que o novo sistema estimule candidaturas de lideranças religiosas, organizações da sociedade civil e personalidades do mundo esportivo e cultural”, diz Nicolau. “Como o sucesso para ser eleito depende exclusivamente da captação de votos pelo candidato, por que não tentar a sorte?”
4) Manutenção da distorção entre os estados – Em todo país onde vigora o voto distrital, o tamanho dos distritos é escolhido de modo que os representantes sejam escolhidos por uma quantidade aproximadamente igual de eleitores. No Brasil, a representação na Câmara já é distorcida pela distribuição das bancadas estaduais (o voto de um acreano vale nove vezes o de um paulista). Ao considerar todo o estado como um único distrito, o distritão mantém essa distorção, sem adotar a principal vantagem associada ao voto distrital.
5) Efeito duvidoso no custo da eleição – Ao contrário do que argumentam os defensores do distritão, a campanha não custaria necessariamente menos. Por dois motivos. Primeiro, a concorrência com candidatos famosos elevaria o custo para os demais se fazerem notar. Segundo, não haveria necessariamente uma redução substancial na quantidade de candidatos. Pelo levantamento de Nicolau, os votos já se concentram em poucos nomes. Em 2014, os 10% mais votados somaram 75% dos votos, enquanto os 70% menos votados, apenas 5%. Em São Paulo, onde a disputa é mais acirrada, os 10% mais votados obtiveram 82% das votação – ante 4% para os 70% menos votados. O “mercado eleitoral”, afirma Nicolau, não é pulverizado, mas altamente concentrado. “Soa estranho o argumento de que o distritão concentraria ainda mais o financiamento das campanhas e os votos”, diz ele.
6) Indefinição sobre os suplentes – Quando um deputado é obrigado a deixar o cargo, seu substituto é escolhido na lista de seu partido ou coligação. Com o distritão em vigor, seria o próximo mais votado na lista geral. Poderia, portanto, ser um deputado de outro grupo partidário. “Um deputado federal conservador poderá ser nomeado ministro e ser substituído por um suplente de esquerda”, diz Nicolau.
Se tem tantos defeitos e já foi derrotado há pouco mais de dois anos no plenário, por que ressuscitar o distritão agora? “A única função parece ser ampliar as chances de sobrevivência da elite política”, diz Nicolau. “Não tem outra explicação.”
A ideia dos deputados é que o fundo de R$ 3,6 bilhões em recursos públicos para a campanha e o distritão aumentem a chance de reeleição dos atuais deputados. Com a reeleição, eles manteriam o foro privilegiado e poderiam resistir aos avanços Operação Lava Jato – basta lembrar o caso do ex-deputado Rodrigo Loures, cujo processo acaba de ser transferido do Supremo Tribunal Federal para a primeira instância.
Mesmo isso, contudo, pode ser uma ilusão para eles. “Por que trocar um sistema altamente oligopolizado por uma disputa em que será muito mais fácil para nomes com liderança na sociedade entrarem na política?”, pergunta Nicolau. “Por que perder o mecanismo de ascensão na carreira garantido pela atual regra da suplência?” Seria, segundo ele, como se um peru estivesse organizando a ceia de Natal.
Fonte: “G1”
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